Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O Real

Uma amiga levou a filha de cinco anos pela primeira vez a um estádio para ver a Copa. Diante do furor do Coliseu, a pequena arregalou os olhos e disse: “Mãe, a vida é real!” A menina percebia, ali, que o que se acostumara a ver pela TV emanava de algo muito maior, mais belo e complexo: a vida como ela é.

Minha percepção não foi diferente, ao desembarcar de um voo Rio/Brasília e rumar para o estádio Mané Garrincha, cruzando a Esplanada dos Ministérios. Há mais de dez anos eu não pisava no Planalto. A ausência fez da capital um lugar virtual para mim. Mas, naquela tarde, me lembrei do quanto a cidade é concreta. Ao passar pela roleta, avistei um rosto conhecido. Demorei a identificá-lo. Era Joaquim Barbosa.

Ao contrário da indignação e do desconforto que exibiu durante todo o processo do Mensalão, Joaquim estava sereno. Seu corpo se mantinha ereto, sem os espasmos das dores lombares causadas pelas longas horas na cadeira da corte.

“Eu já tratei de diversos ministros com problemas de coluna”, comentou a doutora Lúcia Braga, da Rede Sarah, a respeito da ergonomia falha do tribunal, “mas as poltronas do supremo são tombadas pelo patrimônio, não é possível trocá-las.”

Nos bastidores do jogo, cruzei com Fernando Collor, Renan Calheiros e Aldo Rebelo, políticos que me acostumei a ver no noticiário e que, descobri então, são tão reais para mim quanto o Mickey e o Pato Donald. Mãe, a vida é real! Pensei.

Em campo, outro personagem de ficção, Neymar, chamou a responsabilidade para si, como fazem os heróis dos quadrinhos. O craque manteve a tradição de Pelé, uma ausência absurda no cerimonial desta Copa.

A pavorosa abertura, o horror dos homens cabaça, da piroga e do índio triste, de Lopez e Leitte saindo da bola feia prometiam um desastre que acabou não acontecendo. A arquibancada, tomada pelo verde e amarelo, frustrou os que apostavam no levante.

Rendição à realidade

Três dias antes do Mundial, assisti ao Roda Viva com o jornalista Juca Kfouri. Foi um dos depoimentos mais lúcidos e apartidários que ouvi sobre as malversações que dominam o futebol e o país. Na longa entrevista, Kfouri revela que nenhum político, seja ele presidente, governador, prefeito ou congressista, do PSDB, do PT, do PMDB, PSB ou PCdoB, conseguiu barrar o poderio dos que ditam as regras do gol desde a redentora. O jornalista fez um raio X não só das relações da política com o futebol, como também da mídia com a Fifa.

A TV aberta é sócia do evento, o que compromete a visão isenta dos fatos, além de provocar a inveja e a revolta dos que ficaram de fora do negócio. E mesmo a imprensa dita livre, ressaltou o sabatinador Alberto Dines, vacila, desde a Copa das Confederações, sem saber se aprova o Mundial, se ataca a truculência policial, ou condena a ação dos Black Blocs.

O Brasil é um país violento, afirma Kfouri. O Homem Cordial não é bonzinho, mas um ser que não se guia pela razão. A reflexão procede. Por mais que se discorde, ou não, do governo, choca ver a turba em uníssono mandar a presidente tomar no cu.

As reformas que Kfouri defende para o gramado não diferem da tão sonhada reforma política, aquela que nos livraria das dezenas de micropartidos que ocupam o Congresso com o único objetivo de negociar seu voto em troca de regalias. Mas, apesar da consciência da tragédia estrutural que nos acompanha, o jornalista não se locupleta num niilismo destrutivo, tão cego quanto o ufanismo exagerado. Kfouri não concluiu o curso de sociologia da USP, onde pretendia provar que o futebol não é o ópio do povo. O cidadão sabe distinguir o jogo político do jogo em campo, diz ele.

A tese talvez explique o direito que o brasileiro se deu de ser merecedor desta Copa. As facções mais radicais, os partidos mais ardilosos, que procuram se apropriar de manifestações legítimas e usá-las em benefício próprio, não encontraram espaço diante da vontade da maioria de usufruir de um talento que possui.

Gilberto Carvalho também se rendeu à realidade, afirmando que o descontentamento com o governo não partiu apenas da elite branca. Foi das raras vezes que ouvi um petista falar do partido não como alguém que defende um time, ou uma religião.

A vida é real.

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Fernanda Torres é atriz e escritora, colunista da Folha de S.Paulo