Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Bem me quer, mal me quer

“Vocês gostam de mim! Vocês realmente gostam de mim!” Quando Sally Field concluiu o agradecimento pelo seu segundo Oscar de melhor atriz, em 1985, pelo filme Um Lugar no Coração, a plateia em Hollywood caiu numa risada que era parte ternura, parte sarcasmo. A ternura era pela franqueza da atriz, que tinha feito seu nome na TV nos anos 60 como A Noviça Voadora e admitira que, mais do que tudo, sonhava com o respeito de seus pares. O sarcasmo pode ter sido inspirado pelo fato de que as outras quatro atrizes concorrentes naquele ano tinham desempenhos superiores. Elas eram Jessica Lange, Sissy Spacek e duas das maiores atrizes da língua inglesa, Judy Davis e Vanessa Redgrave. Já ouvi várias vezes comentários sobre a necessidade de aprovação que usam a frase “Vocês realmente gostam de mim”.

Quando o presidente Lula insistiu na realização da Copa e dos Jogos Olímpicos no Brasil, suspeito que ele tinha aspirações semelhantes às de Sally Field. Não falo de grandes oportunidades de trazer turismo e melhorias de infraestrutura a múltiplos estados. A orgia de gastos e superfaturamento, os pobres despejados, o viaduto despencado, não acredito que faziam parte dos planos. Mas ficou claro que impedir tudo isso também não.

Falo da ânsia de protagonismo que nos fez abrir embaixadas em cidades como Basseterre, a capital do arquipélago caribenho de São Cristóvão e Neves, a menor nação independente das Américas, com sua população de 57 mil e colocada como 180ª parceira comercial do Brasil.

Nós éramos populares mas nossos pares não nos achavam capazes de uma performance com calibre de Oscar. Sorríamos e encantávamos como a Noviça Voadora mas isso não nos valia um convite para contracenar com Jack Nicholson, quer dizer, George W. Bush. A mesma insegurança confessada pela atriz abraçada à sua estatueta parece saltar destas palavras de Lula sobre a escolha do Brasil para sediar os Jogos: “É a autoafirmação de uma nação, um povo. É a demonstração de que nós queremos participar definitivamente desse mundo globalizado, com inserção soberana e realizando tudo aquilo que nós temos direito”.

Outro lugar

Coitado do povo que precisa sediar evento esportivo para se sentir inserido no mundo. Soberania não é a palavra que me ocorre depois que descobrimos como a FIFA tungou o Brasil e como, segundo rumores, o Comitê Olímpico Internacional teria ameaçado nos tomar os Jogos e sediá-los em Londres se não abrirmos mais os cofres. O prefeito de Nova York decidiu cair fora da competição para sediar as Olimpíadas de 2024 depois de concluir que o evento ia atrapalhar a economia da cidade. Filadélfia seguiu o exemplo.

Escrevo a uma distância geográfica que me não me permite aferir o humor de brasileiros e turistas ou celebrar as nefastas previsões que não se concretizaram. Mais conhecido por passar pitos na nossa política econômica, o jornal britânico Financial Times decretou o Brasil vitorioso por antecipação nesta Copa. “Se você mora em Paris, fica desorientado ao visitar um país onde quase todo mundo é simpático”, escreve Simon Kuper, um holandês.

Depois de exaltar a qualidade do futebol jogado, ele lista como segundo e terceiro argumentos pelo evento vitorioso o Brasil e os brasileiros. Nossas belezas naturais e a atitude que ele disse lhe ter proporcionado um curso intensivo de gerência do seu mau temperamento. Kuper conta que o tema do artigo lhe ocorreu quando estava boiando na piscina do hotel em Brasília, ouvindo o gorjeio de pássaros. O quarto argumento do jornalista foi ter atravessado uma Copa sem o medo que sentia do crime na África do Sul, em 2010. Ele admite que circulou em locais turísticos com forte policiamento. “No Brasil”, escreve, “até os policiais lhe dão um amigável tapinha nas costas quando você passa (se você é um estrangeiro branco de classe média, de qualquer maneira)”. Não duvido do desfrute do jornalista, mas os brasileiros que não recebem de meganhas amistoso tapinhas nas costas e voltarão a enfrentar índices calamitosos de violência urbana assim que o juiz apitar o fim do último jogo podem suspeitar que Kuper continua boiando. Em sua defesa, lembro que o artigo elogioso é sobre a experiência de passar pela Copa e não de viver no país.

Mas a distância do Brasil me colocou próxima a outra realidade. A da torcida contra nós. Em toda a minha experiência de expatriada nunca vi tanto rancor gratuito. A combinação da Internet com os ânimos exaltados pelo esporte é poderosa e promoveu um novo tipo de hooliganismo. Durante o jogo contra a Colômbia, a mídia social explodiu em postagens de ódio e sarcasmo que chegaram ao auge quando Neymar saiu de maca, um incidente que foi, acreditem, celebrado, não por trolls analfabetos mas por jornalistas e acadêmicos. Um sociólogo de Duke University escreveu no Twitter que “todos odeiam o Brasil” e, depois de dizer que Neymar estava fingindo, apagou o tweet, imagino, assustado com a reação. Imagine se ele diria durante uma aula, “todo mundo odeia o Brasil”.

No Huffington Post, um certo Samuel Luckhurst listou as cinco razões pelas quais seria um desastre o Brasil ganhar a Copa. Uma delas é a própria seleção: “É só uma olhada nos jogadores quando saem valsando no intervalo para converter torcedores neutros em fãs da Colômbia. O falso machismo, os delírios de grandeza, o excesso de celebração e autossatisfação, até para um time medíocre como este, não têm rivais”. Vou me abster de interpretar tanta hostilidade, mas é certo que ocupamos outro lugar na imaginação globalizada. Só não sei se é o lugar sonhado pelo Lula.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York