Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Adivinha quem está inovando?

O mais velho dos axiomas televisivos acaba de voltar à tona no Brasil. Ele estabelece que o público da televisão aberta não é sensível à qualidade. Há muitos anos as emissoras respondem a isso da maneira mais segura: confirmando a aparência da verdade, oferecendo ao público o lixo que, na sua visão, representa o auge do que o espectador tem condições de consumir.

Por uma aritmética simples, quanto mais bem posicionada estiver a emissora, menos ela terá condições de arriscar. Pode arriscar quem estiver no traço (embora isso não aconteça) porque não tem nada a perder. Não se movimenta, por razões óbvias, quem estiver com 40 pontos; e, dessa maneira, gira a roda. O corolário do sucesso é, assim, o engessamento; e os padrões nos quais esse engessamento se assenta são o que vão moldar toda a cadeia das emissoras que vem logo a seguir.

Só que, no Brasil, a TV aberta é um caso especial. É ela que constrói o repertório intelectual do seu público. Gostar ou não gostar, portanto, torna-se muito menos importante do que aderir. A adesão acontecerá, sem dúvida. A questão está nas perdas que certamente acontecerão enquanto isso. Não existe na história do conhecimento humano (e muito menos na história da televisão) processo inovador imediatamente assimilado pelas massas. Essa é uma das razões pelas quais, num cenário competitivo de emissoras privadas, o jogo da invenção é disputado no campo de defesa. As outras razões correm por conta da burrice, pura e simples.

Herança benigna

Costuma-se demonizar a Globo por definir esses padrões e levar, com ela, todas as demais redes abertas à estagnação. Recentemente, no entanto, a Globo, contra todas as expectativas, vem promovendo uma revolução silenciosa que quebra esse paradigma e pode fazer a televisão brasileira crescer qualitativamente como há anos não acontece.

É uma revolução corajosa, justamente porque chama a si o axioma do mínimo denominador comum. Ela está presente em quase toda a programação: jornalismo (ainda que em escala menor), ficção, entretenimento e até mesmo – e de forma muito emblemática, porque é aí que os maiores paradigmas são retorcidos – nas chamadas.

Luzes vermelhas, é claro, estão se acendendo a toda hora. E as sirenes tocaram forte com o desempenho da novela O Rebu, que caiu de 23 para 13 pontos em apenas dois dias. O Rebu é uma novela sofisticada de muitas maneiras. Joga às vezes com longos planos-sequência que subvertem o costume do espectador de consumir planos de 2 a 4 segundos, como se isso fosse o default do meio; tem uma delicada direção de fotografia a cargo de Walter Carvalho – um dos melhores profissionais de sua área em todo o mundo – onde as cores são tênues, às vezes desaparecem, e a textura é completamente fora do usual em televisão, onde quer que ela seja feita. Sua dramaturgia, embora reverente ao mainstream da teledramaturgia brasileira – o que, surpreendentemente, ocorre também no áudio, onde se optou por não avançar (fala-se na televisão hoje como se falava no cinema nos anos 1950, quando os diálogos eram dublados e o equipamento pouquíssimo sensível) – está bem longe de envolver o espectador pelas emoções mais baratas. E mesmo no formato – são apenas 36 capítulos de 30 minutos, o que permite o enxugamento de barrigas de conteúdo, verdadeiros reservatórios que, espremidos por 180 capítulos, tornam praticamente impossível a construção de ações sem doses paquidérmicas de redundâncias.

É na dramaturgia que a Globo tem demonstrado atos de coragem quase suicida, porque contra eles um público viciado há muitos anos nos mesmos padrões haverá de se rebelar. Luiz Fernando Carvalho, por exemplo, um diretor voltado para o experimentalismo formal que em tese só pode cavar seu espaço nas últimas horas da noite, foi parar na faixa das 18h. Mas é justamente para isso que servem experimentações formais – cavar espaços em terrenos feitos áridos há anos – ou então não servem para coisa alguma.

Deve-se levar em conta, repito, que o público de televisão aberta não carrega em geral referências externas, mas as referências que lhes são impostas pela própria televisão; seu repertório, fora da televisão, tende a ser pequeno. Por isso, a televisão tem sua zona de conforto naquilo que o público já conhece, mesmo que o que ele conheça seja pouco expressivo ou ruim.

Tome-se as chamadas, por exemplo. Um narrador berrando chavões publicitários sobre um lettering uniformizado de forma primária nunca pareceu muito estranho a esse público desejado e moldado pela própria TV. A Globo também parece estar mudando isso. Cada produto apregoado tem agora as suas próprias características, como se isso fosse alguma novidade – e ninguém precisa de um narrador gritando obviedades nos ouvidos de ninguém.

Com exceção dos italianos e da maior parte dos latino-americanos, são poucas as redes de televisão que ainda tratam suas mensagens como atrações de parques infantis. Não podemos negligenciar o fato que o público brasileiro vem há muitos anos sendo submetido a esse procedimento. Está sendo libertado dele agora. É talvez a única boa herança que a TV aberta tenha recebido das redes por assinatura. Seu público vai estranhar, é claro. Mas a libertação dessas amarras, mesmo que inspirada pela TV fechada, constitui também, neste momento, uma saudável revolução na televisão aberta brasileira.

Vespeiro agitado

As coisas são bem mais complicadas no jornalismo. Não é fácil empurrar um programa como o Fantástico para a frente – e, para libertar os telejornais de correntes enferrujadas fixadas há tanto tempo sobre a forma de se expressar, é preciso uma energia que não existe nem na maior rede nem em qualquer outra do país. No tocante ao jornalismo, a Rede Globo implantou há bastante tempo a premissa da inexistência de seres humanos pensantes do outro lado da câmera, e ainda vai levar algum tempo para corrigir esse erro.

A profusão e a qualidade de repórteres e correspondentes, e a agilidade conseguida a muito custo, esbarram no filtro da maneira com que isso é negociado com o telespectador, com a possível exceção do Jornal da Globo. Contudo, a renegociação do pacto com o espectador não se faz com a compra de tecnologia, de formatos ou de programação. Não dá para evitar, porém, que isso aconteça num período curto – menos de cinco anos, certamente. Pode-se enumerar razões objetivas para isso, mas a principal é justamente o público sobre o qual a televisão estará focando nos próximos anos.

Os jovens não gostam de ser tratados como seres transparentes, sobretudo porque ainda não se sentem como tal. São eles que estão inspirando, ao que tudo indica, as mudanças em curso na Globo – como foram os jovens que inspiraram a renovação promovida por fenômenos isolados na TV aberta, como Pânico ou o argentino naturalizado brasileiro CQC.

A reconstrução silenciosa a que estamos assistindo não se compara com o que a NBC precisou fazer quando de sua incorporação pela GE em 1986, com Bob Wright, e muito menos com as inúmeras tentativas de “reposicionamento” que redes menores promovem com incômoda frequência no Brasil. Contraria a tese de que não se mexe no que está ganhando. Coloca-se o braço num vespeiro enfurecido, e não há analista que possa prever o tempo necessário para a aderência do público.

Quem diria…

Maior produtora de teledramaturgia do país, uma das maiores do mundo, pesa sobre a Globo um notável conflito: como seguir produzindo as séries e novelas que ainda constituem sua maior fonte de receita e, ao mesmo tempo, estar preparada para o cenário natural da televisão aberta nos próximos dez ou vinte anos, a TV ao vivo.

Respostas a esse e outros conflitos estão sendo dadas, também de maneira discreta, em ritmo de perestroika. Até bem recentemente, a Globo era obrigada a desconhecer a existência de redes sociais e periféricos. Da noite para o dia, as novas tecnologias passaram a ser incorporadas ao conteúdo de séries e novelas como Geração Brasil e outras. De inexistentes, tornaram-se elementos de linguagem e parte do desenho de tramas transmidiáticas. De fato, o consumo do conteúdo televisivo, como se sabe, está hoje atrelado de forma inalienável à presença da segunda tela, da terceira, de periféricos e principalmente de dispositivos conectados. Por quanto tempo o consumo tradicional, linear, estará substituído por esse kit, é difícil precisar. E, no entanto, para desespero dos puristas, não é possível pensar em televisão aberta, neste momento, sem toda essa companhia.

Em parte porque as aplicações interativas no passado esperadas da TV digital acabaram transferidas para uma TV conectada, capaz de falar a mesma linguagem dos tablets e dispositivos afins. Em parte, também, porque, para o jovem – e também para os mais velhos com mais de dois neurônios – estar conectado é tão importante quanto respirar. Integrar os gadgets que estão na frente da tela a princípio para dispersar é um desafio que cada rede tenta enfrentar à sua maneira. A Globo já entendeu que fechar os olhos a isso é o caminho menos razoável – e parece entender agora também que a forma de aproximar a dramaturgia do público mais jovem não está na temática, mas no tratamento.

A adesão dos novos públicos não é bem uma questão de se reconhecer na tela como um skatista, mas de ter um conteúdo afinado com a sua maneira de percebê-lo e consumi-lo. Pode-se até antecipar por alguns anos a perda de um público que já está de saída – da Globo e da televisão –, mas é estratégico antecipar a chegada de um público que vai se instalar. Novelas como Meu Pedacinho de Chão, O Rebu (e possivelmente, a partir de agora, Império) já apresentam um claro diferencial criativo sobre o que é produzido inclusive para as TVs fechadas – onde até recentemente se acreditava que estava o monopólio da qualidade. Estão desafiando a paciência do público, derrubando audiências sedimentadas, e certamente levando à loucura os executivos mais conservadores da rede. Mas também estão experimentando, mexendo, arejando a televisão. Espantam a todos com uma das mais improváveis revelações: o que parecia impossível, aconteceu: a Globo está inovando.

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Nelson Hoineff é jornalista, produtor e diretor de televisão