Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Exímio contador de casos, era engraçadíssimo e gravíssimo

Morreu João Ubaldo Ribeiro. Acabo de saber. A notícia chegou numa manhã de sol, com o vento forte anunciando a frente fria.

O Ubaldo é a consciência mais livre que conheci. Millôr e ele. Um acadêmico dotadíssimo, frequentador dos botecos de esquina, erudito de shorts e chinelo de dedo.

Exímio contador de causos, era engraçadíssimo, e gravíssimo, quando preciso. Mais que baiano, um baiano da ilha que, avançada no mapa, primeiro defendeu a nossa soberania.

Ubaldo tinha uma inteligência assim, soberana, assombrosa, intimidadora, não fosse o calor com que te olhava, quando ria espremendo os olhos, meio índio, meio preto, meio árabe e português. “Sou argelino na França, iraquiano na América e turco na Alemanha”, dizia.

Chegava com horas de antecedência nos aeroportos, ciente de que enfrentaria a dura. No Charles de Gaulle, em Paris, depois de vencidas as filas de imigração, avistou uma tropa de elite com cães farejadores vindo na sua direção. Foi encostado de encontro à parede e teve os fundilhos revistados por um focinho adestrado na frente de crianças e senhoras idosas que esperavam o embarque.

Ele oscilava entre a candura máxima e o rigor extremo. A severidade era herança da criação que recebeu em casa. “Meu pai era obsedado por mim”, me disse ele, numa entrevista. Aprendeu a ler com cinco anos, dado o desespero do patriarca por ter um filho analfabeto. Abriu “Dom Quixote” e, em uma tarde, tornou-se íntimo das sílabas.

Apanhou mais de uma vez por não saber a lição e cursou direito obrigado. Preferia filosofia, fetiche das garotas pra frentex dos 1960.

Ubaldo era quente, galante, feio e irresistível.

O ensaio geral de “A Casa dos Budas Ditosos” foi um corridão melancólico, com ele, e só ele, na plateia. Saí certa do fracasso. Três dias depois, na estreia em São Paulo, o embaraço não se repetiu. O público respondeu furioso e as confissões de alcova se transformaram num fenômeno que me acompanha há mais de uma década.

Cada vez que narro a pornopopeia, me surpreendo com o ritmo da partitura, com as pausas, os apartes, as conclusões, o humor delirante, a delicadeza, o lirismo e a redenção do texto. É como estar com o Ubaldo de novo; e quem esteve, sabe do poder encantatório, dos volteios de raciocínio, das cortadas ágeis e do falar pausado, quase anedótico, do monstro de Itaparica.

Passamos juntos um fim de semana a dois, em Salvador, quando a peça se apresentou no Teatro Castro Alves. Paula e Caetano cederam a casa no Rio Vermelho e viramos as madrugadas conversando sobre o que a baiana do livro tinha dele.

As chamadas de lançamento anunciavam a comédia de João Ubaldo Ribeiro. Depois da primeira sessão em Salvador, de volta no camarim, vi que algo o incomodava. Ele me chamou de lado, há tempos não via o espetáculo. Com muito tato, disse que eu havia perdido a humanidade, que estava buscando o riso. Por fim, pediu que parássemos de nos referir ao texto como uma comédia.

A cobiça e a mecânica da repetição traíram a grandeza do homem. Nunca mais fui chula, nunca mais.

Mestre da era digital, Ubaldo dominava a web e mandava recados vez por outra. Guardo alguns gravados, naquela voz incrível que o pai proibiu que servisse ao canto. Um mês atrás, precisei de um amigo. Coisa rara, pedi um encontro. Ele me recebeu em casa, num domingo chuvoso, e conversamos longamente, como havíamos feito uma vez, na casa do Rio Vermelho.

Eu não sabia, mas era a despedida.

Ubaldo é o tronco do ipê, como Caymmi e Glauber. Um desses espantos made in Bahia. Sem ele, o mundo perde muito da graça.

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Fernanda Torres é atriz e colunista da Folha de S. Paulo