Idiomas não são inteiramente redutíveis uns aos outros. Palavras e expressões à primeira vista equivalentes podem carregar conotações distintas, que reverberam além do alcance dos tradutores. Daí a eventual necessidade ou de manter certas coisas na língua original ou de fazer meias-solas em pés de página. Portanto, o adágio “tradutor, traidor” não é acusação, mas necessidade. O bom profissional trai para se manter fiel.
Pense na dificuldade que tradutores do português têm com “saudade”. Ao que consta, não há equivalente em outro idioma. O alemão possui uma palavra aparentada, Sehnsucht. Esta, no entanto, fala de um sentimento difuso de incompletude, ao passo que “saudade” tem um objeto determinado. Sente-se saudade de uma pessoa, um lugar.
Em junho, lancei mão de uma expressão em inglês para falar do que sinto pelo ministro Joaquim Barbosa: mixed feelings. Traduzir para “sentimentos misturados” não dizia exatamente o mesmo. Traduzir pelo jargão psi, para “dissonância cognitiva”, explicaria algo que não era para ser explicadinho. Daí meu apreço por mixed feelings.
Este mês, um leitor usou a expressão wishful thinking para me falar da patacoada que fez a maioria dos brasileiros — não ele, não eu — achar que aquela seleção do Felipão daria algum caldo. Recair no jargão “pensamento desejante” também não resolveria a parada. Sugeriria um processo inconsciente. Não era o caso. O que houve foi o desejo deliberado de que a seleção andasse porque queriam que andasse. Wishful thinking.
Conversando com uma amiga sobre esse tipo de incomunicabilidade idiomática, ela me falou de uma de suas expressões favoritas da língua inglesa, aquela que diz que uma pessoa got him/herself together. Qualquer tradutor do Google é capaz de oferecer uma versão satisfatória: “Ele/ela conseguiu se recompor.” Porém, não é bem isso. “Ele/ela se reuniu consigo mesmo/mesma” seria menos distante, mas meio doido.
Vício nacional
Agora, ponha he/she was all over the place no tradutor automático. Ele vai se sair com o literal “ele/ela estava em todos os lugares”. Não é nada disso, não se trata do dom da onipresença, de nada que se aplique ao Neymar ou à Ivete Sangalo. A expressão em inglês quer essencialmente dizer que a pessoa está desorganizada, fora de controle. Entretanto, a imagem embutida na expressão original não é traduzida dessa maneira. Algo sempre se perde na tradução. Manter o original pode ser mera contenção de danos.
Lembro-me de outra amiga tentando explicar ao marido inglês o que significava uma expressão da época em que se conheceram, “falar abobrinhas”. Acabou criando a piada privada talking vegetables. Por outro lado, ninguém traduz nomes de gêneros musicais, senão pratica alta traição. Bossa nova é bossa nova em qualquer idioma. New bossa era outra coisa, um subproduto inglês dos anos 1980 que incluía a chatinha Sade.
Gosto do modo cauteloso como os franceses dizem que algo é bom: pas mal. Gosto mais ainda do modo como eles dizem que algo é muito bom: pas mal du tout. Claro, uma tradução para “não é ruim” ou “não é ruim mesmo” não ofenderia ninguém, mas perderia o delicioso componente de mau humor contido no original francês. Gosto também da irônica sutileza de ça va sans dire, que não equivale ao bruto “é evidente” como sugere o tradutor na internet. Lulu Santos incluiu o literal “isso vai sem eu dizer” numa de suas mais belas canções, “Apenas mais uma de amor”. Funcionou.
Não é nem preciso trocar de idioma para encontrar expressões que não podem ser tomadas ao pé de nossa letra. Minha avó materna fez parte dos estudos em Lisboa. Ela usava um bocado de lusitanismos. Vivia repetindo “baratas se fingem de mortas para entrar no cu dos vivos” (isso não soa grosseiro além-mar) tanto para se referir aos insetos cascudos propriamente ditos quanto a pessoas sonsas e traiçoeiras. Para uns e para outras, é preciso ter certeza de que as patinhas para cima não são simulação.
Outro dia, um amigo brasileiro que mora em Portugal me apresentou a uma expressão que achei genial e, em certos contextos, substitui com vantagem o popular “eles/elas são farinha do mesmo saco”. Inclusive porque de certa forma se funde a “o Diabo que o/a carregue”. Diante de alternativas ruins, diz-se “venha o Diabo e escolha”.
Engraçado… Não sei por que associei a expressão ao nosso quadro eleitoral.Decerto mais o quadro estadual, uma catástrofe sobre a qual não tenho ânimo nem de fazer piada, mas também o federal. Uma candidata renova aliança programática com o probíssimo PR, outro sugere que o PMDB sugue mais do governo antes de se unir a ele, um terceiro se alia simultaneamente ao PT e ao PSDB. Venha o Diabo e escolha.
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Por falar nisso… e o Dunga, hein? Esperar mudanças das múmias emparedadas na CBF era, afinal, mais um sintoma do vício nacional em wishful thinking. O futebol brasileiro está fadado a se tornar o que foi o uruguaio até a breve renascença de 2010: uma espécie de civilização perdida, uma lembrança distante do Éden.
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Arthur Dapieve é colunista do Globo