Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O combustível que move a ciência

A renomada revista eletrônica Ciência Hoje On-line tem publicado com certa regularidade artigos da educadora Vera Rita da Costa (nenhum parentesco conhecido com este autor). Em alguns deles (e.g., “Não há perguntas imbecis“, em 27/3; “A arte de perguntar“, em 3/4; e “Oportunidade de aprender“, em 23/4), a autora tem chamado a atenção para um ponto de vista pedagógico que me parece fundamental: valorizar as perguntas feitas em sala de aula. Tal procedimento não apenas favorece a “curiosidade natural” dos alunos, mas também contribui para o desenvolvimento do raciocínio lógico e da capacidade argumentativa – dois atributos que, convenhamos, estão hoje soterrados (dentro e fora da escola) por uma avalanche de tolices ideológicas e quinquilharias eletrônicas descartáveis.

Subindo uma rampa em espiral

Perguntar é o modo como nós, seres humanos, verbalizamos, ou de algum outro modo expressamos, o estado momentâneo de nossa curiosidade. Sem perguntas, dúvidas e questionamentos sistemáticos nós simplesmente não teríamos inventado a pesquisa científica. Como herdeiros dessa tradição, grandes cientistas são também grandes questionadores – foi assim, por exemplo, com Galileu Galilei (1564-1642), Isaac Newton (1643-1727) e Charles Darwin (1809-1882). O ensino de disciplinas científicas – notadamente as chamadas ciências naturais, como biologia, química e física – deveria levar isso em conta, fazendo com que as aulas se pautassem mais pela efervescência dos questionamentos e debates.

Formular boas perguntas é por si só uma etapa fundamental da pesquisa científica. Veja: algumas das questões mais intrigantes da ciência moderna foram originalmente formuladas por gerações bem anteriores à nossa. As tentativas de resposta é que vêm sendo substituídas. Na verdade, a principal contribuição de muitos cientistas tem mais a ver com as questões que eles formularam do que propriamente com as respostas que ofereceram. Há mais de dois mil anos, por exemplo, os filósofos gregos já se interrogavam a respeito da natureza íntima da matéria – uma questão com a qual nós ainda nos defrontamos, embora a resposta atual esteja fundamentada em argumentos bem diferentes daqueles usados em épocas tão remotas.

Fazer e refazer a mesma pergunta ao longo das gerações não significa que a ciência esteja estagnada. Na verdade, isso nos tem levado cada vez mais para o alto, como se estivéssemos a subir uma rampa em espiral. A resposta atual que damos a uma determinada pergunta equivale à paisagem momentânea que apreciamos ao longo da subida. Em geral, as respostas tendem a se tornar mais precisas e detalhadas, do mesmo modo como vislumbramos uma paisagem cada vez mais ampla à medida que ganhamos altura.

Convertendo dúvidas em perguntas

São as perguntas que nos fazem avançar. Tenha isso em mente sempre que quiser fazer uma pergunta e se sentir acanhado. Ninguém deveria se envergonhar por ter dúvidas. Ao contrário, devemos converter as dúvidas em perguntas e, sempre que possível, discutir a respeito delas com colegas ou professores.

Eis algumas perguntas intrigantes que podem gerar debates e discussões em sala de aula (em qualquer nível de ensino): os números foram descobertos ou inventados? O fogo é matéria? Como o fogo do fogão consegue esquentar o que está dentro da panela? A velocidade da luz sempre foi a mesma? De onde vem o futuro e para onde vai o passado? Como surgem as bolhas que sobem em um copo de refrigerante? Qual é o estado físico da memória? Por que o céu é azul? Qual é a hora mais fria do dia? Chove mais pela manhã, à tarde ou à noite? O tamanho das gotas de chuva é sempre o mesmo? Por que faz frio no inverno e calor no verão? Se a Terra gira, por que nós (aparentemente) estamos parados? Para onde correm os rios nos países que estão abaixo do nível do mar?

Há perguntas igualmente intrigantes no âmbito do universo biológico: o que acontece com um furo feito em uma folha em expansão? Por que as plantas produzem muito mais flores do que frutos? Por que as árvores do dossel de uma floresta tendem a ter a mesma altura? Por que existem tantos insetos? Como as aves conseguem voar? Como os animais sabem o que precisam comer? Por que os predadores não exterminam as suas presas? Os animais pensam ou sentem dor? Por que sonhamos? Como eu consigo me lembrar de mim mesmo de um dia para o outro?

Por que a vida na Terra está organizada em organismos individuais, em vez de formar uma massa contínua recobrindo todo o planeta? Como um código genético tão monótono, envolvendo apenas quatro “letras” (A, C, G, T ou U) (ver, neste Observatório, o artigo “Engarrafamento em via dupla“), consegue produzir tantos organismos diferentes? Como uma célula-ovo microscópica se transforma em um bebê? Por que os filhos em geral se parecem mais com os seus pais do que com outros indivíduos da população? Por que algumas espécies produzem muitos descendentes pequenos, enquanto outras produzem poucos descendentes grandes? Por que alguns organismos se reproduzem apenas uma vez na vida, enquanto outros se reproduzem várias vezes? Evolução e seleção natural significam a mesma coisa?

Por que a cor da pele dos seres humanos varia tanto? Todos os seres humanos pertencem a uma mesma espécie? Por que ficamos doentes? Por que envelhecemos? Se a África é o berço da humanidade, por que as sociedades mais avançadas não estão naquele continente? Se a agricultura mundial produz comida mais do que suficiente para alimentar a humanidade, por que ainda há tanta gente passando fome?

Muitas outras questões poderiam ser levantadas. Você mesmo deve ter o seu próprio repertório de dúvidas e perguntas. Espero que sim e, nesse caso, só posso sugerir uma coisa: adote o costume de anotar suas perguntas. Cultive-as. Cuide delas como quem cuida das flores de um jardim vistoso.

A ciência é um empreendimento intelectual

Não são poucos os alunos que ainda hoje veem o professor como um sabe-tudo. É um equívoco e tanto: os professores não têm (nem deveriam ter) respostas prontas para todas as perguntas. Afinal, a ciência é um empreendimento, não um produto pronto e acabado. Um bom professor ou uma boa professora deve ser alguém que tenha disposição para explorar o desconhecido. Recitar respostas prontas e estereotipadas pode até impressionar um ou outro aluno, mas dificilmente servirá para cultivar uma nova geração de espíritos inquietos e indagadores – algo que tanto carecemos hoje em dia.

Do mesmo modo, a cabeça dos cientistas não é um catálogo repleto de nomes, números ou palavras difíceis. Grandes cientistas são, antes de tudo, sujeitos questionadores que anseiam encontrar respostas satisfatórias – ainda que parciais e provisórias – para as perguntas que os afligem. Em vez de tratá-los como um tipo de “enciclopédia ambulante”, seria mais apropriado imaginá-los como bons marceneiros, sempre prontos a usar o material e as ferramentas disponíveis para construir e reconstruir os móveis mais valiosos do mundo da ciência – hipóteses, leis, teorias.

De resto, note que algumas das perguntas apresentadas anteriormente representam um desafio real à experimentação (podemos de fato investigar o que ocorre com o furo feito em uma folha em expansão, assim como podemos descobrir qual é o período mais chuvoso do dia). Outras perguntas, no entanto, servem para instigar o espírito, pois dificilmente poderiam ser adequadamente investigadas no âmbito das escolas de ensino básico (e.g., questões envolvendo a natureza física da memória, o “fluxo” do tempo e a autoconsciência em animais). Nesses casos, o professor poderia apresentar e discutir em sala de aula algumas das ideias correntes a respeito de cada uma dessas questões, além de orientar os alunos em suas leituras. Essa é, aliás, uma boa perspectiva para se adotar em relação à literatura científica: um valiosíssimo legado que herdamos de gerações anteriores, um rico e variado patrimônio em permanente estado de mudança.

Os avanços da ciência ocorrem mais em função do desenvolvimento de processos de ajuste ou substituição, envolvendo novas ideias e conceitos, do que da acumulação de novos dados e informações – para um exemplo recente, ver a matéria “Conhecimento de neurologia e psiquiatria na Mesopotâmia só foi superado no século 18“, de Rafael Garcia, publicada na Folha de S. Paulo, em 10/8/2014. E, como foi dito no início deste artigo, o modo mais indicado para se alcançar isso foi inventado há muito tempo: perguntar, perguntar, perguntar – eis o combustível que move a ciência.

No fim das contas, a motivação que habitualmente conduz os grandes cientistas em suas pesquisas não difere muito daquilo que movia os nossos ancestrais africanos, milhares de anos atrás: a curiosidade e a inquietação que sentimos diante do desconhecido. É bem verdade que os cientistas estão também envolvidos em uma disputa (velada ou escancarada) com os seus pares (i.e., em uma corrida com outros cientistas da mesma área pela primazia nas descobertas), mas essa já seria outra história.

Coda

O livro Filosofia da ciência, de Rubem Alves (1933-2014), educador e prolífico escritor brasileiro recentemente falecido, é uma instigante e acessível introdução ao mundo da ciência. A primeira edição do livro foi publicada pela editora Brasiliense, em 1981; mais recentemente, porém, a obra passou a ser publicada pelas Edições Loyola (ver aqui).

Rubem Alves nasceu em Boa Esperança, município localizado na região Sul de Minas Gerais e que conta hoje com uma população de aproximadamente 40 mil habitantes (ver aqui). Curiosamente, foi lá também que nasceu Newton Freire-Maia (1918-2003), cientista, educador e escritor igualmente prolífico. Freire-Maia também se preocupava com os fundamentos do pensamento científico. Autor de uma vasta produção bibliográfica, o seu livro A ciência por dentro (1990) (ver aqui) pode ser lido como um complemento ao livro de Rubem Alves – um pouco mais formal, mais ainda assim acessível e de leitura agradável.

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)