Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Meio século de rosa

Pantera Cor-de-Rosa poderia ter sido uma comédia sem muita graça de Blake Edwards, com David Niven como um profissional do colarinho branco, como coadjuvantes, Peter Ustinov interpretando um inspetor de polícia tonto e Ava Gardner encarnando a mulher do investigador. Teve certo sucesso e David Niven a usou, já que a bilheteria respaldava a sua carreira, para ressuscitar o personagem do homem magro, um clássico da literatura e dos filmes de detetive.

Poderia ter sido assim, terminar como mais um filme dos anos sessenta. Mas a história do cinema, mais que o resto das belas artes, está sujeita a múltiplos detalhes que variam radicalmente o resultado e A Pantera Cor-de-Rosa, por causa dessas mudanças, se transformou em um clássico da comédia, no início de uma frutífera série de colaborações entre Blake Edwards e Peter Sellers, que substituiu Ustinov no último momento, duas pessoas que chegaram a se odiar de forma profunda, embora soubessem que se necessitavam mutuamente para fazer o público rir com classe, talento e inteligência.

 

 

Este ano se comemora nos Estados Unidos o 50º aniversário da estreia – em março de 1964 – do primeiro filme, a gênese de uma saga que gerou frutos no cinema e em várias séries de desenhos animados. Ganhou um Oscar como melhor curta de animação, converteu Edwards e Sellers em milionários, inclusive chegou a conseguir o milagre de estrear um de seus episódios – Na Trilha da Pantera Cor-de-Rosa – com seu ator principal morto. A Pantera Cor-de-Rosa também é a união de dois talentos gigantescos, um diante da câmera, outro atrás dela, e não muito apreciados pelas pessoas que os rodeavam, especialmente Sellers, um grande ator que não sabia o que fazer quando não estava filmando e que convertia as filmagens em um inferno. Alguns companheiros de profissão o qualificavam de Hitler, e Billy Wilder, que já sabia o que era filmar com um desastre ambulante como Marilyn Monroe, também lhe dedicou umas lindas palavras: “Só houve uma Marilyn e, droga, só houve um Peter Sellers.” Edwards não ficava atrás e seu apelido, Blackie (“negrinho”) – que não fazia tanta referência a seu nome, mas a seu estado habitual de ânimo.

Ao roteirista Maurice Richlin coube a honra de ser o pai da ideia. Richlin e Edwards tinham trabalhado juntos em Anáguas a Bordo e foi ele que propôs ao diretor desenvolver um roteiro sobre “um inspetor francês de polícia, um cara obcecado por prender um famoso ladrão de joias [que roubou o diamante que batiza o filme]… e que não sabe que sua própria esposa está dormindo com o criminoso”. Em A splurch in the kisser, a biografia do cineasta escrita por Sam Wasson, o produtor Walter Mirisch se lembra: “Em nossa produtora [Mirisch Company], nossa filosofia era criar uma família. E sentíamos que Blake Edwards seguia o caminho espiritual de Wilder.” Por isso quando apresentou essa sinopse, o diretor de De Folga para Amar,Bonequinha de LuxoVício Maldito e Escravas do Medo, à empresa, conhecida por dar autonomia criativa aos seus diretores, logo começaram a produção. Afinal, com David Niven, Ava Gardner e Peter Ustinov, parecia que era uma aposta segura.

No entanto, o castelo de areia começou a desmoronar. Ava Gardner, chegou em Roma, onde foi feita a filmagem, com pedidos caríssimos, entre eles levar a produção a Madri, onde ela estava morando. Os produtores decidiram despedi-la e Audrey Hepburn recomendou que Edwards contratasse uma amiga sua, a modelo e atriz francesa Capucine. Mas, neste meio tempo, a esposa de Ustinov recomendou a seu marido que abandonasse o projeto: com uma desconhecida entre os três nomes principais, aquilo parecia que ia afundar. Assim, numa sexta-feira de novembro de 1962, faltando três dias para iniciar a filmagem, que seria na segunda-feira, dia 12, não havia outra peça chave.

O agente Freddie Fields recomendou um de seus representados, Peter Sellers, que dispunha de quatro semanas livres antes de começar Dr. Fantástico, segundo conta a biografia do ator escrita por Ed Sikov. O ator estava entediado, redecorando seu apartamento depois de seu primeiro divórcio, e voou até a capital italiana por um contrato de 90.000 libras. Sem tempo para reescrever o roteiro, e sem conhecer um de seus protagonistas, Edwards, nervoso, estava esperando por ele no aeroporto. “Enquanto íamos até a cidade, Peter e eu descobrimos que éramos almas gêmeas no que se referia à comédia muda. Amávamos O Gordo e o Magro, Buster Keaton, comediantes deste estilo.” Assim nasceu o inspetor Jacques Clouseau — que usava o sobrenome do cineasta Henri-Georges Clouzot —, e aPantera Cor-de-Rosa nunca mais foi um filme sobre um golpista, mas uma comédia sobre um policial tosco que não entende nada de rendições nem fracassos, que não percebe o mundo que o rodeia. De humilhação em humilhação, até o sucesso e o absurdo final. “O slapstick [comédia de golpes e pancadarias] está em seu interior”, assegura Edwards.

O que faz de A Pantera Cor-de-Rosa um grande filme não é tanto seu roteiro, mas a plena consciência dos dois autores daquilo que estavam fazendo. Por um lado, Sellers, converte em ícone um cara que desestabiliza tudo o que toca da mesma forma que se sente desestabilizado pela sociedade. Por outro, Edwards cria uma comédia de grandes aspirações, repleta de beleza, de lugares paradisíacos, de belos personagens de classe alta, rostos atraentes e elegância inata, enquadramentos que poderiam lembrar Ladrão de Casaca, de Hitchcock, e que fazem pensar nas paisagens de James Bond. A música de Henry Mancini incide nesta atmosfera. É o auge do cool. Todo um sonho delicioso… e aí aparece Clouseau para fazer tudo voar pelos ares. Seu casaco cinza quebra o disfarce colorido; seus tropeções e disparates desencadeiam cataratas de problemas. O bigode marca o ridículo de seu aspecto, um bigode que o ator deixa crescer inspirado em um retrato do capitão Matthew Webb, o primeiro homem que, em 1875, cruzou a nado o Canal da Mancha… se a lenda for verdade. Inclusive lembra outro mítico personagem do slapstick: o senhor Hulot de Jacques Tati.

 

 

Enquanto Edwards retrata Niven com primeiros planos perfeitos, deixa Sellers vagar pelo enquadramento em planos distantes que permitem filmar todos seus movimentos. O diretor assegurou em seu livro Sophisticated Naturalismque “a ideia de que slapstick e sofisticação são incongruentes não é verdadeira. Acho que acontecem muitas coisas maravilhosas quando as duas coisas são misturadas.” E, se havia alguma dúvida, há outra obra-prima que reforça esta teoria: Um Convidado Bem Trapalhão. Para começar a gravar A Pantera Cor-de-Rosa, Edwards sentia que precisava de uma fonte para os créditos que avisasse o público sobre a elegância de sua comédia. Por isso encarregou a dois titãs da animação como David H. DePatie e Friz Freleng para que dessem vida ao diamante Pantera Cor-de-Rosa – batizado assim porque um reflexo em seu interior lembra o animal com essa cor. A dupla entrega uma centena de esboços e entre os três escolhem o ganhador. Faz tanto sucesso que se converte na marca da saga e o piloto, criado para a série homônima de televisão, ganhará o Oscar de melhor curta de animação em 1965.

Pantera Cor-de-Rosa é também o início de uma das grandes relações tormentosas da história do cinema. Ao acabar a gravação, que ocorreu tranquilamente, Sellers enviou uma carta aos produtores assegurando que tinham filmado um desastre. “Foi assim que sofri a primeira das ações absolutamente imprevisíveis e loucas, habituais de Peter”, contou o diretor algum tempo depois. “Mas pensei: Para que discutir se não vou voltar a vê-lo?”

Encontraram-se muitas vezes mais: no ano seguinte com Um Tiro no Escuro – desta vez sem nenhuma joia –, com Um Convidado Bem Trapalhão, em 1968, e com outras três panteras cor-de-rosa em 1975, 1976 e 1978. O dinheiro que ganharam pela trilogia, justamente quando os dois estavam duros, converteu os dois em milionários… Embora tivessem jurado que nunca mais trabalhariam de novo juntos e chegassem a se comunicar nas filmagens através de terceiros.

Sellers ainda desenvolvia outro roteiro sobre a saga, O Romance da Pantera Cor-de-Rosa, quando faleceu em 1980 depois de sofrer um infarto do miocárdio. Edwards, que não estava nesse projeto, fez o Na Trilha da Pantera Cor-de-Rosa em 1982 com tomadas falsas e sobras de Sellers dos filmes anteriores; A maldição da Pantera Cor-de-Rosa em 1983 com um Clouseau interpretado por vários atores — o policial se submete a várias cirurgias no rosto –, e O Filho da Pantera Cor-de-Rosa em 1993, com Roberto Benigni como descendente do investigador. Nenhuma delas alcançou a categoria, a classe e o humor da primeira.

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Entre sucessos e desastres

Sam Wasson desenvolve em seu livro esta teoria sobre Blake Edwards: “A Pantera Cor-de-Rosaapresentou Clouseau. Um Tiro no Escuro o aperfeiçoou. A Volta da Pantera Cor-de-Rosareconhece o legado do filme e A Nova Transa da Pantera Cor-de-Rosa fez uma paródia. A Vingança da Pantera Cor-de-Rosa, a mais obscura da saga, ofereceu um Clouseau novo e vulnerável como nunca tínhamos visto.”

Para Edwards e Sellers a quarta filmagem foi terrível, e se comunicaram através de notas escritas, segundo conta Herbert Lom, outro dos atores da saga, como Dreyfuss. No entanto, a bilheteria superou os 100 milhões de dólares, e com Sellers e sua saúde já com muitos problemas, Edwards concordou com um quinto filme, “sentindo-me como um homem condenado a uma doença de um ano”.

Foram 10 anos de diferença entre Um Tiro no Escuro – que na verdade não pertence à saga cor-de-rosa – e A Volta da Pantera Cor-de-Rosa, e a fama daquelas aventuras não parou de crescer graças às duas séries de desenhos animados, ao Oscar que ganhou com o curta de animação, à trilha sonora de Henry Mancini e inclusive a um desastre, Inspetor Clouseau, o filme que em 1968 teve Alan Arkin como Clouseau. Só um ponto a favor: o desenho animado do inspetor e o gorro combinando com a gabardina do casaco do policial nascem neste filme.

Os desenhos voltaram em sucessivas entregas – infelizmente, nos últimos, a Pantera Cor-de-Rosa fala –, e fizeram videogames e quadrinhos com o animal (ele tem até uma Estrela da Fama em Hollywood com suas patas), Edwards chegou a inventar um descendente secreto de Clouseau paraO Filho da Pantera Cor-de-Rosa em 1993 com Roberto Benigni nesse nefasto papel (ainda por cima foi o último filme de Edwards), e, neste século XXI, Steve Martin reiniciou a saga com dois filmes novos, manchando o legado. Todo o universo cor-de-rosa: Cato (Burt Kwouk), o criado de Clouseau; Dreyfuss (Herbert Lom), o chefe que quer matá-lo; as mulheres que o evitam; o casaco; o subordinado tonto; o golpista David Niven; as aparições habituais de intérpretes como Claudia Cardinale e Graham Stark; a música de Henry Mancini ou as sequências iniciais de animação… Tudo isso não faz sentido se faltam Sellers ou Edwards. Ou os dois ou nenhum.

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Peter Sellers em palavras

Não há palavras amáveis para Blake Edwards por parte de Peter Sellers em nenhuma das biografias dedicadas ao comediante, um homem que estreou no palco duas semanas depois de nascer, pois era filho de uma família de music hall de pouco sucesso. De todos os livros publicados, o mais próximo a ele éThe mask behind the mask, de Peter Evans, porque o jornalista britânico foi o único que o entrevistou – a primeira versão é de 1969, a última, de poucas semanas depois da morte de Sellers. Também pôde conversar com suas ex-espoas e amigas – uma confessa que com A Vingança da Pantera Cor-de-Rosa o ator chegou a ganhar mais de oito milhões de dólares e estamos falando de 1978, e que o ator meses antes de morrer já estava preparado para isso, “tinha perdido o gosto pela vida, só sentia falta de ser nomeado Sir”. E é curioso, porque a saga não apenas encheu a conta corrente, mas por exemplo, em seu primeiro encontro com Britt Ekland, que se converteria em sua segunda esposa, foram ver A Pantera Cor-de-Rosa que acabava de estrear em Londres.

Segundo conta Roger Lewis em outra das biografias, Sellers morreu com o roteiro de O Romance da Pantera Cor-de-Rosa acabado (apenas para escrevê-lo receberia um milhão de dólares) e se desenvolvia em um mundo de luxo perto do Cassino Royale com uma arqui-inimiga feminina. Como confessa Anne Levy, a primeira mulher de Sellers, a Lewis: “Nunca soube relaxar, nem sair de férias, nem ser ele mesmo. Só era feliz interpretando um papel. Por isso foi tão duro ver Bem-vindo, Mr. Chance, porque está muito perto da verdade”. Embora a mais amarga seja outra descrição, escrita pelo seu filho, Michael Sellers, “P. S. I love you”, e foi o filho, entre os três que teve, que o tratou melhor. Ao morrer, estava a ponto de se divorciar de sua quarta esposa, Lynne Frederick que, por testamento, ficou com todo o dinheiro. Seis meses depois de Peter ter morrido, Lynne voltou a se casar, desta vez com a estrela de TV David Frost, de quem se divorciou e se casou de novo, agora com um cardiologista (com quem teve uma filha). Em 1994, faleceu aos 39 anos, entregue ao álcool e à cocaína. A herança passou para sua mãe, Iris Frederick, atualmente responsável e detentora de tudo relacionado com Peter Sellers. Quando ela morrer, a fortuna irá para Cassie, a filha de Lyne e do cardiologista.

Pode ser que no fundo Sellers fosse uma cápsula vazia, mas capaz de se transformar em qualquer outra coisa, pois como disse David Niven em uma missa em sua homenagem, celebrada em 8 de setembro de 1980, quando o comediante teria cumprido 55 anos: “Quantos realmente te conhecemos? Depois de 25 anos de amizade, eu ainda tenho que me perguntar isso.” Ou pode ser que vivesse a vida de outros. Ou de outro. Ed Sikov, outro dos biógrafos, revela que um ano antes do nascimento do ator, seus pais tiveram outro filho, um bebê muito fraco que foi chamado de Peter, mas que faleceu pouco depois. Enterrado, nunca se voltou a falar dele na família.

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Gregorio Belinchón, do El País