Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

‘Nos mííííínimos detalhes’

O caro leitor certamente se lembra de um personagem de um programa humorístico que sempre fazia perguntas sobre o sentido “exato” das palavras. “É que eu gosto de tudo bem explicadinho, nos mííííínimos detalhes”, dizia esse personagem, criado e interpretado pelo ator Roni Rios, já falecido.

O “Explicadinho” está mais vivo do que se supõe. Muitas vezes, ele é representado por leitores que se manifestam contrariamente ao uso de certas palavras ou expressões, que, segundo eles, não têm o sentido com o qual foram empregadas.

Um desses casos é o da palavra “pênalti”, que, para algumas pessoas, não nomeia o tiro livre direto a 11 metros do gol, mas apenas a sanção aplicada contra uma equipe de futebol quando um dos seus jogadores comete uma falta dentro da sua grande área. Para essas pessoas, está errado dizer que o jogador X bateu o pênalti; o que se deveria dizer é que o jogador X bateu o tiro livre direto… Francamente!

Defender essa “tese” equivale a eliminar da língua um dos tantos casos de metonímia, figura que consiste no emprego de uma palavra fora do seu sentido literal, mas com alguma relação com esse sentido literal, como se vê quando se usa a matéria no lugar do objeto (“Nem as cordas do meu pinho podem mais amenizar a dor”), o autor no lugar da obra (“Você precisa ler mais Drummond”), o continente no lugar do conteúdo (“Bebi uma garrafa”) etc.

Uso “correto”

Voltando ao pênalti, é perfeitamente possível, sim, empregar esse substantivo de origem inglesa para designar o tiro livre direto a 11 metros do gol a que tem direito o time que sofreu a falta pela qual o time que a cometeu foi castigado ou recebeu a sanção máxima. Ufa!

É só procurar “pênalti” nos dicionários. O primeiro sentido é o “legal”, ou seja, o que tem relação com a regra do futebol; o segundo é, “por metonímia”, o próprio tire livre direto, que, em Portugal, é chamado de “grande penalidade” (por aqui muitos locutores usam a tradicional expressão “penalidade máxima”).

Por falar em dicionários, teoricamente eles são (ou deveriam ser) o cartório da língua, ou seja, deveriam registrar o que apresenta determinado índice de uso até o momento do fechamento da edição do dicionário, já que, como se sabe, a língua é viva (mal chega às livrarias, o dicionário já está desatualizado…).

Se todos fôssemos literais, isto é, se usássemos todas as palavras apenas com o sentido original ou literal, jamais poderíamos nadar numa piscina, por exemplo, já que a palavra “piscina” vem da mesma raiz (latina) de “peixe”. Não é por acaso que quem é do signo de peixes é “pisciano” ou que a criação de peixes se chama “piscicultura”. Uma das definições que o “Houaiss” dá de “piscina” é esta: “Reservatório de água onde se criavam peixes”.

O caro leitor notou a forma verbal “criavam”, do pretérito imperfeito do indicativo? Pois é. O uso das piscinas mudou, e por causa disso o sentido de “piscina” também mudou.

Lembrei-me de um colega, do departamento de esportes de uma emissora de TV. O chefe dele não queria que se usasse a palavra “justamente” com o sentido de “exatamente”, “precisamente”, que o chefe dizia ser “errado”. O chefe só queria o uso “correto” de “justamente”, que, segundo ele, equivale apenas a “com justiça”, “com correção”. Não é assim, não, meu povo. É isso.

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Pasquale Cipro Neto é colunista da Folha de S.Paulo