Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O desinteresse alimenta o vírus

Um boato começou a circular nas redes sociais na noite da terça-feira, 5 de agosto. A mensagem, repassada principalmente pelo Whatsapp, informava que um nigeriano tinha chegado a São Luís (MA) com o vírus Ebola e teria sido internado no Hospital Universitário com sintomas da doença, chegando a óbito no sábado (9/8). A “notícia” ainda assegurava que o caso deveria ser mantido em sigilo por decisão da Secretaria de Saúde maranhense. Ainda não sabe de onde saiu o texto que se espalhou rapidamente. No dia seguinte, o Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão informou, por meio de nota, que não existe nenhum caso de paciente internado na instituição com o vírus Ebola.

Na sexta-feira, 8 de agosto, após a internação de um angolano no Real Hospital Português do Recife (PE), vários rumores surgiram de que o paciente portava o vírus Ebola. A assessoria de comunicação da unidade hospitalar negou o caso, segundo publicou o Diário de Pernambuco

Os falsos boatos de que o vírus Ebola está dando os primeiros passos no Brasil já existiam desde antes da Copa do Mundo, quando, segundo o site Boatos.org, circulava no Facebook a informação de que a cidade de Basiléia, no Acre, devia ser isolada por causa do vírus (ver aqui). E não há evidências de que isso vá acabar logo, porque é uma notícia que gera interesse. Talvez esse tipo de divulgação possa até aumentar, agora que o ministro da Saúde, Arthur Chioro, disse para os brasileiros não temerem o vírus Ebola. “Será verdade?”, pergunta-se a oposição.

A mídia

A mídia brasileira respondeu à notícia da epidemia na África e ao interesse do público com uma cobertura importante e sem grandes erros. O foco da infecção informativa veio, além da "Terra de Ninguém" digital, do consumo direto de notícias do exterior. Semana retrasada, os telejornais americanos trataram o retorno aos Estados Unidos de um paciente médico, Kent Brantly, mais perto do espetáculo do que da informação – como foi destacado neste Observatório (ver “O papel e a responsabilidade da mídia diante do Ebola“) –, com câmeras instaladas em helicópteros seguindo uma UTI móvel pelas ruas de Atlanta com jeito de perseguição policial, como descreveu Leslie Savan em seu blog no site da The Nation (ver “What’s Behind the Media’s Ebola Sensationalism?“ – O que está por trás do sensacionalismo da mídia pelo Ebola?).

Era de se esperar que, depois de toda a adrenalina injetada pelo visual de filme de ação, o público tenha mudado o canal quando o americano infectado com o vírus Ebola ingressou no hospital andando, dispensando a maca. Os impulsos voyeurísticos que nutriam o desejo de presenciar o sofrimento do corpo alheio atacado por um vírus letal não devem ter conseguido acalmar a ansiedade. Sem dúvida, ainda vamos assistir a mais reality shows do apocalipse infeccioso na TV com cenas novas, nas quais o sangue será real e o sofrimento, também. “Dar a uma doença o tratamento de OJ Simpson é um sintoma de uma doença da mídia que não parece ter cura”, opinou Savan.

A epidemia de Ebola na África coloca em evidência outras doenças da humanidade. Nos Estados Unidos, e também na Espanha, políticos de toda espécie aproveitaram-se do vírus Ebola para tirar da gaveta a velha teoria de que, palavras mais, palavras menos, a pele escura é o embrulho ideal para trazer problemas aos brancos. O Brasil não tem os mesmos vírus que a África nem os mesmos males sociais que os Estados Unidos; porém, também aqui, o bom jornalismo ainda tem uma missão a cumprir na questão do vírus Ebola.

O que publicar?

O título mais frequente nas matérias sobre o Ebola parece um placar, uma concorrência de quem oferece a cifra mais alta, valor que depende do dia e hora do fechamento da edição. Os números que divulga a Organização Mundial da Saúde (OMS) impressionam, mas poderiam não ser verdadeiros. Na opinião dos especialistas, o número correto de casos pode ser de duas a quatro vezes maior.

Uma frase que replicada ad infinitum foi “a epidemia está fora de controle”. Pronunciada por um integrante da organização Médicos Sem Fronteiras, a sentença tem grande peso, mas desinforma quando não explica claramente o que significa, para uma epidemia, estar controlada.

O importante e necessário, em primeiro lugar, é ajudar a evitar o pânico entre os brasileiros, colocando a informação no contexto. É verdade que a OMS declarou recentemente Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional (PHEIC, na sigla em inglês), um nível que não é atingido todo dia, mas isso não significa que o risco fora daqueles países que já têm vítimas seja muito maior do que antes. Mesmo que a PHEIC preveja restrições a viagens, o ponto talvez mais importante é que permite dispor de mais recursos financeiros para melhorar a situação. Ou seja, a declaração de emergência internacional é um chamado urgente à solidariedade. É preciso mais dinheiro na África para deter a tragédia no mundo.

Mas, deste lado do Atlântico, isso parece não interessar demasiado quando a misofobia (medo mórbido de sujeira, imundícies ou de contaminação, segundo o dicionário Houaiss) ataca a população. As autoridades de saúde insistem que uma epidemia fora da África é pouco provável, dizem que, em comparação com a gripe, o Ebola é de mais fácil controle porque não é transmitido pelo ar. Além disso, a morte chega rápido, o que impede uma disseminação mais generalizada do vírus, e não é uma infecção de larga duração como o HIV, que permite a transmissão por muito tempo. Mas o medo, irracional como ele é, tem o controle da situação.

Barrar o ingresso de milhões de pessoas na portaria social e trancar a porta dos fundos, além de impossível, é inútil. O ideal é conseguir oferecer aos leitores a informação necessária e o marco de reflexão adequado para converter o medo em um sentimento mais produtivo. Enfrentar o pavor com dados exige insistir em reportagens esclarecedoras, destacar que há maneiras de identificar os doentes rapidamente e que é possível controlar a transmissão com práticas básicas, como o isolamento dos pacientes e o uso de equipamentos individuais de proteção. Há bons exemplos a seguir. Na ocasião da chegada do paciente americano infectado aos Estados Unidos, o jornal Washington Post informou de maneira clara, e deu as ferramentas para entender a natureza da questão (ver aqui).

Segundo o Post, era a primeira vez que um paciente de Ebola era trazido aos Estados Unidos, porém, não a primeira em que um vírus ultraletal ingressava ao sistema de saúde americano. O Centro de Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês) dos EUA menciona ao menos cinco ocasiões em que pessoas entraram no país carregando vírus Marburg e da febre de Lassa, ambos da família das febres hemorrágicas, e o sistema sanitário conseguiu fazer com que os vírus não se expandissem.

Mitos e polêmicas

O depoimento de uma servidora do CDC, que passou um mês na Libéria, mostra uma outra cara do problema: “Muitas pessoas na África Ocidental não sabem em que acreditar, em quem acreditar… Perguntam-se se não é uma maneira de os governos ou dos estrangeiros tirarem vantagens deles”. Os mitos na região são incontáveis. Vão desde os mais básicos, como o de que é possível prevenir a infecção comendo cebola crua, aos mais sofisticados, com explicações políticas de por que os hospitais só servem para os infectados morrerem isolados. Uma equipe da Médicos Sem Fronteiras teve que parar o trabalho na Guiné porque os médicos estavam sendo acusados de trazer o vírus ao país.

É um fato: a luta contra o Ebola só será vitoriosa se, previamente, ganhar-se a luta contra os mitos. Amparada na ciência, a Organização Mundial da Saúde não tem vergonha de pedir ajuda a líderes religiosos e a curandeiros.

Um outro mito que circula também fora da África é que o vírus Ebola pode ter sido usado como ensaio de arma biológica. De fato, a possibilidade até pode ter sido analisada pelos serviços de segurança americanos, e há cientistas ouvidos pela imprensa sensacionalista que dizem que isso é possível (ver aqui). Mas a CBS foi uma emissora que decidiu enfrentar a ideia com pesquisa. Na reportagem “Could Ebola be turned into a bio weapon? Possible but not so easy“ (Poderia o Ebola se converter em uma arma biológica? Possível, porém difícil), a emissora conclui que a ideia deve ser vista com ceticismo. Não seria uma boa arma. Simplesmente, o vírus Ebola não é muito resistente quando tirado de um corpo humano ou animal – e tão inútil como pólvora molhada.

A atual epidemia também oferece gancho para polêmicas. Quando o Comitê de Ética da OMS aprovou o uso de tratamentos experimentais nas vítimas, exigindo delas apenas a obrigação “moral” de compartilhar a informação obtida, ninguém ousou dizer que talvez não fosse uma boa ideia; ninguém teve a coragem de expressar que talvez isso seja um grande erro, e a mídia não quis se perguntar se a possibilidade de salvar uns poucos não é uma medida populista que presta um desserviço ao avanço da ciência e à chave para, no futuro, salvar muitos mais.

Sempre foi aceito que era melhor acabar um nível de pesquisa para começar outro, com o objetivo de saber o que funciona e o que não serve de nada. Será que agora esse dogma da ciência médica não vale mais? O que for bom para o Ebola, será também bom para o câncer de pulmão, as doenças degenerativas, genéticas, metabólicas e milhares de outras fontes de dor humana? Sem dúvida, o uso compassivo de um soro experimental exige debate e uma participação cidadã mais profunda. Não apenas discutir se aquelas poucas seringas – que contêm um líquido que ainda não se sabe se é muito bom ou não serve de nada – devem ser dadas de preferência aos profissionais de saúde bem alimentados ou aos africanos famintos. Não adianta discutir se a distribuição entre os países vai ser matematicamente justa, porque o célebre soro é, por enquanto, unicamente uma promessa de cura. A discussão ética sobre a pesquisa clínica tem que ir muito além da epidemia de Ebola de 2014.

Ética

A ética pode ser o nó de muitas reportagens. No dia 1º de agosto foi definido um triângulo que ocupa parte de Guiné, Serra Leoa e Libéria, e foi delimitado um cordão sanitário – aquela linha da qual ninguém sai. Uma prática medieval que naquelas latitudes pode se converter em uma estratégia desumana, com grande risco de ser porosa para quem tiver algum dinheiro na mão. Faltam na mídia discussões sobre esse assunto. De fato, houve mais publicidade quando o milionário Donald Trump tuitou, por ocasião da repatriação de dois americanos doentes, que seria melhor deixá-los na África para que a praga não chegasse à América.

O ponto básico é que, mesmo que seja improvável, se não queremos ter o problema aqui, muitas coisas terão que ser resolvidas por lá. Pensar localmente obriga a atuar globalmente.

O surto atual está se disseminando mais rápido do que o usual porque as táticas habituais de contenção não estão funcionando no precário sistema de saúde africano. “O importante é que sabemos como parar o Ebola com saúde pública: achar os pacientes, isolá-los e tomar conta deles, identificar os seus contatos, educar as pessoas e seguir medidas estritas de controle nos hospitais”, disse o diretor do CDC. “Se fizermos isso de forma meticulosa, o Ebola acaba.”

Vivemos no mesmo planeta. Para não ter o problema no Brasil, a guerra contra o vírus tem que ser ganha em nível local – mas o “local” não é Galeão ou Guarulhos. O local fica a milhares de quilômetros daqui. Para alcançar o sucesso é preciso que um outro continente consiga resolver a falta de infraestrutura, pobreza extrema, desconfiança congênita dos que sempre são enganados e, finalmente, esperar que o plano de resposta da OMS de 100 milhões de dólares chegue ao destino. Portanto, a única maneira de ter sob controle a epidemia não é achar que todo africano com febre é um risco de contágio, nem fechar as portas aos que puderem vir. É ajudar a África a resolver os seus problemas. É isso que está se comunicando?

“Nosso negócio é atualidade”, pode responder um editor bem informado, que antes de tirar férias deixa a matéria pronta e, sem medo de errar, titula: “Mais mortes de que a soma de todas as epidemias do passado”. É verdade. Mesmo se na Libéria e Serra Leoa a informação certa chegasse ao povo, mesmo se a Guiné ganhasse amanhã todos os materiais que precisa para se proteger, como luvas e máscaras, mesmo se a Nigéria melhorasse por decreto o atendimento aos doentes, teríamos as limitadas chances de salvação que oferece a medicina. Não há garantia de um milagre.

Uma hipótese cientificamente fundamentada é que o surto atual começou em uma época de seca prolongada, causada possivelmente pelo maior desmatamento da região nas últimas décadas. Maior desmatamento significa também maior contato com morcegos infectados com o vírus Ebola. “Fatores biológicos e ecológicos podem fazer sair o vírus da floresta, mas claramente é o cenário sociopolítico que dita para onde ele vai, se fica limitado a um ou dois casos, ou se sustenta uma epidemia importante”, afirmaram D.Bausch e L. Schwarz, autores do trabalho “Outbreak of Ebola Vírus Disease in Guine: Where Ecology Meets Economy“ (Surto da doença por vírus Ebola na Guiné: Onde a ecologia se encontra com a economia). Segundo os autores, a pobreza atua de três maneiras: aumentando a área de caça e o tipo de animais que se come, aumentando a deflorestação e o consequente maior contato entre espécies, e pela falta de boa resposta a emergências médicas.

A missão de um jornalista não é apenas noticiar o que aconteceu ontem, mais tentar mudar as situações de amanhã. Neste caso, não adianta se limitar à cobertura da doença. É preciso manter o assunto vivo nos cadernos de Internacional, Economia, Cultura e Meio Ambiente, porque, quando a tragédia piorar, provavelmente não vai ser por ter mudado geneticamente em uma cepa mais transmissível, mas pelas realidades que os jornalistas têm muita experiência em denunciar: o descaso que provoca as más condições sanitárias; a destruição dos ecossistemas, o que aumenta o contato com os animais que funcionam como reservatório; a corrupção crônica e a pobreza.

O mais importante não são os infográficos com os primeiros sintomas que todo mundo já cansou de ver. O que é preciso dizer logo é que negligenciar a saúde dos outros tem, inevitavelmente, um preço global. Guiné, Libéria e Serra Leoa, devastadas pelas guerras civis e com governos corruptos e ineficientes, preenchem todos os requisitos para cumprir a promessa de novas epidemias. O exame das interações entre ecologia, socioeconomia e saúde global nos permite compreender o que aconteceu. Não seria um furo noticiar já o que vai voltar a suceder?

Hoje, na África Ocidental, morrem pelo Ebola muitos mais do que os que sobrevivem. Porém, seria exagero dizer que é por culpa de um ente microscópico que precisa estar dentro de um ser vivo para sobreviver. Negligenciar os problemas alheios, sejam econômicos, políticos, educacionais ou sanitários, é o verdadeiro vírus mortal.

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Roxana Tabakman é bióloga e jornalista, autora de A saúde na mídia – Medicina para jornalistas, jornalismo para médicos (Editora Summus)