Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Estado laico e campanha

A candidatura presidencial do Pastor Everaldo já suscitara discussões acerca da presença de temas religiosos na disputa eleitoral e eu mesmo tratei do tema neste espaço (“Partido de Nicho”, Estado, em 2 de agosto). O assunto ganhou nova força com a ascensão de Marina Silva à cabeça de chapa do PSB, após a morte de Eduardo Campos. Reacenderam-se discussões de quatro anos atrás sobre a importância do voto evangélico (motivadas pela polpuda votação da candidata, em parte advinda desse segmento) e questionamentos ao suposto caráter não laico de sua postulação. São problemas importantes, seja para a discussão mais geral sobre a laicidade do Estado, seja para a reflexão mais específica sobre plataformas de governo rivais.

O secularismo é inerente ao Estado liberal e, portanto, indispensável às democracias de massas – impossíveis sem o liberalismo político, embora não subsumíveis a ele. Isso não torna o secularismo exclusivo de democracias liberais. Estados seculares foram construídos historicamente em contextos autoritários, como a Turquia, sob Mustafá Kemal Atatürk. Ainda hoje no Oriente Médio há ditaduras seculares, como a Síria e o Egito – embora este tenha na lei islâmica uma das fontes da Constituição. Todavia, espera-se que autoritarismos confessionais – como o Irã e a Arábia Saudita – sejam ainda piores, pois até mesmo a liberdade religiosa será perdida. Enfim, embora ditaduras laicas sejam possíveis, democracias confessionais não o são.

No Ocidente, a preocupação com o estabelecimento de um Estado laico remonta ao século 17, tendo sido o filósofo inglês John Locke seu mais célebre defensor, na Carta sobre a Tolerância de 1689. De lá para cá, passando pela Revolução Francesa e pela constitucionalização de vários outros Estados mundo afora, a secularização da política seguiu avançando. Isto não impediu a democracias sólidas abrigarem partidos e grupos de interesse de orientação aberta ou veladamente religiosa. É o caso dos tradicionais partidos democratas-cristãos ou sociais-cristãos europeus, como o alemão, o belga e o italiano (colapsado pela corrupção) e das facções cristãs dentro dos dois grandes partidos norte-americanos. Na França, a religião é banida por completo da esfera pública; na Alemanha, as religiões dotadas de organizações centralizadas recebem recursos públicos mediante a taxação de seus seguidores, mas os que se declaram sem religião não são obrigados a pagar nenhum tributo.

Fazendo média

No Brasil, apesar da contradição dos feriados religiosos e da ostentação de crucifixos em prédios públicos, a separação entre igrejas e Estado é um preceito constitucional, já que a nenhuma esfera de governo é facultado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança” (art. 19). Portanto, o Estado não deve promover, perturbar ou misturar-se com as religiões.

Isso não quer dizer que valores religiosos não possam influenciar a formulação de leis e políticas públicas, da mesma forma que diversos outros tipos de valores o fazem. É aí que surge o questionamento a Marina Silva, tendo em vista ser ela uma pessoa assumidamente religiosa. Em parte talvez por isso mesmo, ela tem tido o cuidado de, em declarações públicas, separar as coisas. Ao afirmar a necessidade de distinguir suas convicções pessoais dos assuntos com os quais precisa lidar como política, Marina propõe uma solução que é a essência do secularismo: a circunscrição da religião à esfera privada, sem invadir a política e a esfera pública.

Entrementes, Dilma faz média com os evangélicos, declarando que “feliz é a nação cujo Deus é o Senhor”. Já Aécio diz ter “fé inabalável em Deus”. Ironicamente, é Marina quem menos instrumentaliza a religião com fins eleitorais.

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Cláudio Couto é colunista do Estado de S.Paulo