Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Humilhação, a matéria-prima dos ‘reality shows’

Sim, eu sei o quanto todos nós estamos cansados de falar mal e de ler gente falando mal dos tais reality shows. Basta anunciarem o novo BBB para que sejamos massacrados por mensagens carregadas de boas intenções (e clichês) que exaltam professores e bombeiros, os tais “heróis anônimos”, como costumam ser chamados esses nobres cidadãos, e, embora concorde com isso, detesto as tais mensagens.

Mas se falar mal de reality shows é tão banal que não aguentamos mais, como temos visto, os produtores de tais programas também devem ter se ressentido de tanto falatório negativo porque estão tentando – com sucesso, diga-se – refinar o que já é ruim incorporando, digamos, alguns acessórios de mau gosto, ironia e doses extras de humilhação àqueles que se dispõem a participar da coisa toda.

Há pouco estreou no GNT um reality chamado Desafio da Maquiagem e ficamos sabendo que “milhares” de maquiadores Brasil afora se dispuseram a fazer vídeos e a mandar para o “funil” que iria peneirar aqueles considerados mais talentosos. Pessoas simpáticas e do bem, trabalhadoras e, mais que tudo, sonhadoras e carregadas de fantasias sobre o mundo da maquiagem, dos famosos e da soberana TV. Vale dizer: parece que tudo vira uma coisa só quando se junta numa tela de TV, pois ela parece tornar tudo inebriante e por vezes, alienante.

Por exemplo: alguns participantes do tal Desafio… estavam visivelmente emocionados por terem sido escolhidos, como se estar ali fosse a realização de toda uma vida (bom, e talvez seja e não há nada de errado nisso). Percebia-se neles um misto de orgulho por estarem na TV e por terem atravessado ilesas o estreito ‘funil’; além de muita ingenuidade e um tanto de deslumbramento por estarem diante dos tais jurados. Estes jurados, aliás, gostam de “causar” e talvez sejam orientados a agirem assim para alavancar a audiência e é aí justamente que está o problema.

Educação? Para quê serve isso?

O processo de todos estes programas, desta verdadeira máquina de moer emoções – ou seria máquina de editar emoções? – é quase simplório: as pessoas mandam seus vídeos, aguardam cheias de esperança e, se são escolhidas, saem de seus rincões e vão pra cidade grande enfrentar o massacre ao vivo, mas vão (ainda) confiantes e transbordando ingenuidade. E diante das câmeras, emocionadas, se lembram da avó falecida, da mãe que emprestou a grana para isso e aquilo e choram copiosamente. Estão vulneráveis e são um prato (bem) cheio para a direção dos tais programas, certamente.

Por sua vez, diante delas estão os “deuses do Olimpo”, os jurados, quase sempre seres que foram ungidos pela deusa mor do nosso tempo (a TV) e convocados para a missão de avaliar – ressuscitando aquela velha expressão: “Quem vai para o trono ou não vai?”

E aí, dá-lhe canastrices! Temos a ex-modelo que tenta cavar um lugarzinho na tela grande e afia os neurônios para parecer inteligente; um maquiador famoso, educado e esforçado e outro, esse sim, terrível e canastrão ao máximo, que usa toda a sua verve de personagem de filme trash de terror para assustar os incautos maquiadores que com os olhos cheios d’água (literalmente) ouvem expressões nada delicadas como “Vaza” e “Dá o fora” quando não conseguem passar adiante nas provas criadas.

Então, a moça que veio lá do interior de não sei onde e que diz cheia de esperança acreditar em seu talento, minutos depois está partindo sem receber mais explicações, depois de ter ouvido um “Vaza”. Singelo, não? E aquele rapaz que contou como foi difícil fazer o vídeo e a viagem etc. que deixou todos em casa torcendo e fazendo promessas… Esse também cata suas coisas e vai para casa em minutos! Não, nenhum dos jurados se lembra de, educadamente, agradecer que tenham se inscrito e acreditado e viajado até ali etc. Educação? Para quê serve isso, afinal de contas?

Nova modalidade

Enquanto isso, a cada prova, grandes tensões são produzidas em tons para lá de melodramáticos, convidados “icônicos e famosérrimos” (para o povinho da moda, é claro) são chamados para abrilhantar ainda mais o processo de triagem com suas presenças magníficas (o Olimpo se abre para novos deuses).

Já aos mortais, lá embaixo, bem lá embaixo, eu diria mesmo que quase invisíveis, tudo é negado: estes devem fazer papéis de nobres e esforçadas criaturas demasiadamente humanas que só querem um lugarzinho ao sol ao lado dos deuses, só querem também ter direito à fama e à vida de celebridades pós-modernas que eles ostentam com tanta desenvoltura, glamour (e nenhuma etiqueta).

De minha parte, fico deveras penalizada de assistir ao festival de humilhações pelas quais passam estes maquiadores. Sim, sei perfeitamente que muito daquilo ali se deve a uma edição que precisa privilegiar os olhares sarcásticos e as palavras ácidas para que tudo pareça cada vez mais difícil. Afinal, não é qualquer um que pode subir ao Olimpo, é preciso ser forte e destemido para enfrentar palavras que destruiriam o ânimo de qualquer mortal em menos de um segundo.

Se você acha que estou exagerando na descrição, basta assistir ao dito-cujo. Ouso dizer que este novo reality show inaugura com louvor a modalidade “humilhação”; afinal, quando se trata de atrair e manter a audiência, tudo – mas tudo mesmo – deve ser usado. Não é à toa que há pouco estreou outro programa chamado – esse foi direto ao ponto: Tudo pela Audiência – mas essa é outra história.

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Ana Claudia Vargas é jornalista