Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A geração perdida?

Há muitas bienais não sentia emoção semelhante a essa que senti ao visitar a feira que se encerrou no domingo passado [31/8]. A culpa era toda minha, ou nossa. A Companhia das Letras tardou demais para reconhecer como seu um público emergente no mundo dos livros. Durante certo tempo quase viramos as costas para este novo Brasil. Sabíamos que o país mudava, mas demoramos para dar passos concretos no sentido de conversar com outras classes, publicar para outros gostos que não os nossos. Foi quando a Penguin entrou como sócia da Companhia que tivemos a coragem de encarar de uma vez por todas esse novo público. Junto com o grupo inglês sentimos que poderíamos aprender a editar livros mais acessíveis, populares e comerciais. Sem preconceito. Precisamos dos estrangeiros para virarmos mais brasileiros.

O mercado de livros hoje é povoado principalmente pelas várias classes que ascenderam nos últimos anos, fruto da distribuição de renda que começou no governo Fernando Henrique e se aprofundou nos mandatos de Lula. Além disso, o mercado reflete o investimento em educação que os últimos governos fizeram, municiando bibliotecas escolares e distribuindo livros para as classes mais pobres. Assim, o público que se vê nos corredores da Bienal é diferente daquele que conheci há trinta e sete anos, quando comecei a trabalhar na Brasiliense e me emocionei na minha primeira Bienal, ainda no parque do Ibirapuera. É diferente, também, do público que fez da Companhia das Letras um sucesso de vendas muito maior do que o esperado no início da editora, quase vinte e oito anos atrás.

Hoje, com os novos selos – Paralela e, principalmente, Seguinte –, a Companhia fala com o novo Brasil, e o mal-estar de ver a Bienal crescer nos outros estandes, e não no nosso, passou. O curioso é que esse passo, o de criar selos populares, foi duramente criticado por certos intelectuais e autores da editora – alguns paradoxalmente mantêm fortes vínculos com o PT – e mesmo questionado internamente, por parte dos funcionários, eleitores dos partidos mais à esquerda. Cheguei a convidar um desses autores – ao saber que dizia que a “Companhia das Letras não é mais a mesma” – a visitar a editora e conhecer nossos novos selos e o trabalho social que fazemos voluntariamente, patrocinando grupos de leitura nos presídios femininos e em orfanatos. A visita ainda não aconteceu, mas quem sabe, assim como a ficha demorou para cair para mim, a Bienal de São Paulo sirva de gatilho para que os críticos mais elitistas se rendam à nova realidade do país, pela qual tanto lutamos, juntos e por tanto tempo. A Companhia das Letras, mantendo a qualidade do seu selo original intacta, hoje é mais brasileira não só pela publicação de maior número de autores nacionais, cuja maioria é de jovens talentosos, mas também por falar com mais gente, com um novo país de leitores, que certamente irá longe.

Bons programas

Junto da emoção de ver grupos de jovens gritando por seus autores – como nos tempos da Beatlemania –, lutando por senhas, revelando serem os livros objetos de sonho, surgem também algumas indagações. A principal delas é entender que outros fatores, além dos econômicos e do resultado do progresso social, nos fizeram chegar à atual realidade do mercado editorial brasileiro. Um fator extra-econômico e exclusivamente literário se chama Harry Potter. Grande parte do público que lota as bienais é filho de J. K. Rowling. Ou seja, adquiriu o prazer da leitura com o herói de óculos redondo, assim como a minha geração o adquiriu com Lobato ou com o Tesouro da Juventude. Escritores que sabem seduzir os jovens são desbravadores. Eles são os bons fantasmas que estão escondidos nos corredores da Bienal, e explicam muita coisa.

O outro fator, já mencionado anteriormente, é o investimento governamental em educação e em políticas que tornaram o livro mais popular. A sala de aula, os bons professores, os educadores e as bibliotecas são grandes motivadores de leitura, responsáveis por um enriquecimento intelectual inestimável. E sobre este ponto, hoje, infelizmente, pairam dúvidas tão inesperadas como preocupantes.

Vamos lá: os editores esperavam que a Copa trouxesse grandes dificuldades para o mercado editorial no ano de 2014. Isso não aconteceu, ou aconteceu em escala bem menor do que o aguardado. O público jovem foi o grande motor de superação da possível dormência de um país iludido pela Copa do Mundo. Os jovens não pararam de ler John Green, Kiera Cass, Veronica Roth, George R. R. Martin, Cassandra Clare etc. A crise está mais embaixo, justamente onde a bonança começou. As dificuldades políticas e o baixo crescimento do país afetaram justamente o investimento governamental em livros.

Grandes compradores, como as prefeituras de São Paulo e Rio, pararam quase totalmente de adquirir livros. O atual prefeito de São Paulo foi dos melhores Ministros da Educação do país. Seu secretário de educação e a equipe da secretaria são das mais qualificadas que já tivemos. Mas a consequência da não aprovação de um IPTU mais alto para os ricos recaiu sobre os alunos de menor renda. As bibliotecas pagaram parte da conta e seus acervos não foram renovados nos últimos dois anos. É injusto, incorreto e, no mínimo, surpreendente.

A secretaria de educação do Estado de São Paulo e a FDE (Fundação para o Desenvolvimento da Educação) foram os responsáveis por programas extensíssimos de compras de clássicos brasileiros, distribuídos a alunos e professores em larga escala. Os atrasos na operação de distribuição dos livros comprados e dúvidas sobre um programa tão bem-sucedido paralisaram as atividades governamentais no último ano da gestão de Geraldo Alckmin. Há rumores de que parte do secretariado prefere redestinar as verbas para programas voltados para crianças mais novas, considerando a geração dos jovens de hoje como perdida. Investir desde a idade mais baixa é correto, mas imaginem o efeito de bons livros clássicos da literatura brasileira nas mãos de leitores já fisgados pela boa literatura de entretenimento. Teria o efeito de uma bomba propagadora de bons livros, um salto de qualidade absolutamente fundamental. Me pergunto se os responsáveis do governo foram aos corredores da Bienal e viram que a geração não está perdida de forma alguma, que foi ganha por méritos dos bons programas desenvolvidos por eles próprios, pela FDE, cujos profissionais se mostram ávidos para dar continuidade às políticas desenvolvidas no passado recente. Não há nenhum sinal de avanço na escolha de novos livros para 2015, tendo este ano passado em branco, nas principais áreas de investimento da secretaria. A prefeitura do Rio de Janeiro, também tradicional investidora em bibliotecas escolares, claramente não segue mais a mesma linha.

Continuidade necessária

No âmbito federal as coisas andam, mas com uma maior morosidade. Um programa inovador como o que prevê a compra de livros que tematizam questões sociais, raciais e de gênero teve seus livros selecionados, mas o processo de aquisição encontra-se parado. As negociações são mais morosas e o ministro José Henrique Paim, também um homem com vocação para a educação através dos livros, talvez não tenha tido força suficiente para vencer a crise geral do Estado brasileiro. Parece que é preciso vontade política dobrada para que o Brasil continue a crescer na literatura, agora com os maus ventos econômicos que têm soprado de uma maneira geral sobre o país.

O importante é olhar para os corredores da Bienal, para a Flip e para os festivais literários espalhados pelo Brasil e sentir orgulho. Saber que estes corredores devem tanto a grandes autores que souberam incluir os jovens no mundo das letras, como a grandes chefes de governo e a ótimos ministros e secretários de educação. É preciso cobrar continuidade aos governantes que, na área da educação, justamente deram um passo tão importante para mudar o país. Os leitores estão aí. Geração perdida? Uma ova!

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros