Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O discurso messiânico na internet

Como se fabricam os mitos? Assim perguntava Roland Barthes em seu Mitologias, em que se pode perceber certa primazia do signo sobre a realidade, e como esse processo se faz de forma avassaladora em todo instante da vida social, pelos meios de comunicação, na propaganda, nas falas políticas, no cotidiano. Assim o signo se torna o construtor e reconstrutor do real. Nesses instantes atuais, nos momentos de eleições, as produções semióticas se intensificam. Novamente o clima é fabricado e manipulado significativamente e depois retorna ao cotidiano como discursos muito mais potencializados nas redes sociais e internet.

Sem dúvida, a teoria da jornada do herói possibilita a análise desse processo. Os heróis de Hollywood foram construídos sob esse modelo estrutural de narrativa mitológica e o marketing sabe muito bem trabalhar uma espécie de messianismo, como é feito nas propagandas partidárias de Marina Silva. A comunicação proporciona isso, aliado a uma constante forma de esvaziamento da política partidária, em que as respostas ideológicas não correspondem ao desejo do novo para o imaginário dinâmico dos tempos modernos.

Mas o que está em jogo nesse fluxo convexo de signos e discursos na atualidade são as formas como se conectam as visões de mundo e as ideologias, dado que não há signo neutro, muito menos discurso nulo de significado. A história recente do Brasil corrobora para isso, a análise das contradições, das falhas e dos limites da verdade que signo contém.

Para tanto, faz-se uma abordagem analítica do discurso político da candidata à Presidência da República Marina Silva a partir das suas “40 razões para votar em Marina Silva” no site da campanha [marinasilva.org.br] e como isso é entendido, dado que se desdobra nas redes sociais como propaganda política e como práxis. A imagem ideológica da candidata é novidade ou é um engodo discursivo? Que tipo de identidade narrativa esse discurso aponta? Será ela capaz de propor novidade?

“Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”

O discurso da candidata Marina Silva à presidência consegue conjuntamente agregar dois elementos ideológicos: “novo” e “velho”. Ou seja, simbolicamente contém a novidade de dizer-se novo em si mesmo, mas sem mudanças estruturais. Tornando-se o mais do mesmo.

A base discursiva é seu programa “40 razões”, onde se destaca o enunciado: “Representa uma nova forma de governar: Marina Silva não governa com apaniguados nem sob a influência de indicações políticas. Sabe ouvir e governa com a ajuda de técnicos e especialistas. Pretende unir no governo o lado bom de cada administração pública” (http://marinasilva.org.br/40razoes/). Ora, o que se tem é uma coligação de velhas legendas políticas: PSB, PPS, PHS, PRP, PPL e PSL e uma que não foi oficializada: Rede (fundada por Marina).

Aqui, a história mostra as contradições ideológicas do discurso, suas falhas, suas lacunas e seus deslizes. Como pode ser novo dentro de velhos esquemas, com velhos e tarimbados políticos? De que maneira fala-se em nova forma de governar sob uma legenda como o PSB em que a estrutura nuclear é de cunho familiar, como exemplo a família Arraes na política regional, com características combatidas pela candidata. Sem contar mesmo o patrocínio e orientação banqueira do Itaú, sua presença tão forte na campanha, bem como outras empresas com interesses em uma política capaz de enfraquecer a ingerência do Estado na economia.

A construção da “nova política” não resiste a uma breve análise da história recente do Brasil, bem como uma abordagem crítica dos elementos discursivos que ela contem. O novo nesse caso se faz juntamente com a ingerência dos sistemas midiático-oligárquico que o movimenta e patrocina. A “nova política” é um velho modo de se fazer política, é um discurso, uma ideologia, uma propaganda partidária. Ela responde aos anseios juvenis pelo novo. Pode ser velho, mas diz-se ser novo, está valendo. Toda sorte as relações de poder passam por elementos mais complexos como movimentos sindicais, movimentos sociais, instituições coletivas que precisam se direcionar de forma a responder as questões intergeracioanais bem mais profundas que um simplesmente lema: “contra tudo que está aí” que serve como mote para a fala de Marina Silva.

Discurso da salvação

Outro texto mostra um discurso com a promessa de salvação: “a verdadeira política” capitaneada por Marina Silva: “Propõe a verdadeira política: Quem nunca se interessou por política decide se unir a Marina Silva depois de ouvi-la. Ela elimina a distância entre o político e o eleitor, pois sabe que o eleitor é o real agente político.” Nesse momento, o elemento que chama a atenção é como a “velha política” é entendida como “falsa política”. A nova é “a verdadeira política”. O que se tem é a negação da história: as lutas sociais, políticas e democráticas não passaram de uma ilusão, uma falsidade e um arremedo de democracia. Esse discurso parece se assemelhar a um messianismo, em que a promessa do novo anula o velho, ou melhor, nega-o como consequência histórica. Neste instante discursivo, faz-se mister o caráter simbólico e psicológico que se pode compreender no discurso, a imagem do novo é imagem do messias que vem para realizar sua obra, novo céu e nova terra. O milagre. Fim da História. No Brasil, esse movimento é marcado com o nome de sebastianismo (retorno do herói de Portugal, o piedoso Rei Sebastião), que pincela periodicamente a política, dando às figuras dos políticos carismáticos os elementos demiúrgicos desse movimento.

No próprio discurso da candidata há uma contradição lógica que deve ser destacada: “Quem nunca se interessou por política decide se unir a Marina Silva depois de ouvi-la […]” e “[…] pois sabe que o eleitor é o real agente político”. No meio da contradição um atributo messiânico: “Ela elimina a distância entre o político e o eleitor”[…]. Ora, a mediação quem faz é o próprio sistema democrático, não deve ser indivíduos, mas instituições. Mas na teologia esse atributo é do messias que se põe como mediador entre deus e os homens. O demiurgo faz um milagre: interessar quem não se interessa, mesmo sabendo que todos são agentes políticos.

Consoante a isso, surge a promessa do discurso messiânico de salvação e remissão, por trazer “esperança”, a virtude teologal: “Traz esperança: A história de Marina Silva faz acreditar que nada é impossível. Seu exemplo de superação inspira e prova que se há um sonho, só depende de nós o poder de realizá-lo.” A lógica é de fomentar o texto dos eleitores chamados “marineiros” que chamam seus críticos de desesperados. Enquanto, os adversários se desesperam pelas pesquisas, Marina traz esperança de instalação de uma promessa individualista. Toda sorte, a história política se faz não apenas por pessoas, mas por coletivos e instituições. A própria candidata é prova disso, pois sua relação com os sindicatos, a igreja católica, o PT, o Senado Federal, o Ministério do Meio Ambiente, PV e agora o PSB, o Itaú e a Natura revelam um conjunto de circunstâncias que a levam ao sucesso individual. O que parece ser fruto das relações intersociais se dissolvem no individualismo do sucesso e da livre iniciativa. As circunstâncias são apagadas em meras impressões de iluminação messiânica de salvação.

A história dos sujeitos sociais corrobora para construção de um discurso político de salvação, sem as instituições, fragilizando o Estado Democrático de Direito, sintetizando a política em um só sujeito e não no coletivo e traz a esperança salvacionista, mágica e demiúrgica: “É líder servidora: Marina Silva está a serviço de uma causa, a serviço da humanidade. Ela não lidera pela imposição de ideias ou em causa própria, mas sim pelo diálogo e principalmente pelo exemplo.” Esse discurso evidenciado pelo enfraquecimento das instituições democráticas é fortalecido pelo sistema midiático-oligárquico que monopoliza os mecanismos de produção simbólica, criando uma imagem negativa da política e dos agentes políticos. A figura do herói ou super-herói, messias em sua jornada cósmica, concede uma resposta superficial aos problemas sociais e institucionais. Ela, a salvadora, é munida de um carisma supranatural de eleição, uma forma não tão nova, muito sedutora, mas com os devidos limites. Surge assim um discurso identitário que nas redes sociais é pintado de novo, lindo, bonito e cor-de-rosa. Todavia esconde o ultrapassado, o injusto e a engodo das elites econômicas.

A identidade da velha política no novo

Cada discurso tem uma identidade, uma finalidade política, por mais camuflado que pareça ser transparente, não pode ser neutro. Assim o velho é requentado, ressignificado e parafraseado. Na política de Marina Silva o “novo” é invocado em todo instante como chavão político, especificamente como mecanismo de convencimento dos mais jovens e inexperientes, pouco respaldados pela história vivida e experimentada das crises econômicas e políticas.

No seu discurso, a candidata PSB-Rede evita o confronto. A neutralidade superficial da sua fala denuncia uma imagem desprovida de intencionalidade de confronto. Ela se veste como uma beata, puritana e asceta, uma monja. Daí fortalece a imagem demiúrgica que contraria a imagem de Dilma (combativa e gestora). O discurso que reforça a ideia “paz e amor” é sintetizado no enunciado: “É sucessora: Marina Silva integra os avanços dos governos FHC e Lula. É o passo adiante para superar as deficiências que persistem no país. Não é uma opositora, que rejeita tudo, nem uma continuadora, que vê tudo positivo. É uma sucessora.” Ela não rompe nem com a ideia de FHC e nem de Lula, ela é uma amálgama neutra de uma nação sem conflito de classe. Daí se justifica as alianças diversas, ou projetos de alianças entre oponentes que ela tanto promete em sua fala. Em debate, Marina Silva critica a polarização dos dois governos, a concepção da sociedade de classe e polemiza acerca da memória de Chico Mendes, líder sindical que a apoiara outrora, em prol da sua atual mentora intelectual, a banqueira do Itaú. Não “rejeita tudo”, mas também não aceita tudo como se “tudo é positivo”, marina é o zen. O nada. O equilíbrio da homeostase, pois busca acomoda-se. É o clímax da indiferença para poder levar a morte do sistema.

Nesse ponto, a imagem de Marina Silva relembra a velha fórmula política: cessar as crises profundas, humanas e sociais. Bem como o silêncio dos temas relevantes como desigualdade social, distribuição de renda, justiça, saúde, educação e democracia. Todos esses temas se esvaziam em pautas das elites econômicas, a corrupção e seus sucedâneos: “Não camufla defeitos Marina Silva se apresenta como o ser humano que é. Não quer admiradores, mas sim uma ação onde todas as qualidades dos outros possam ser somadas às dela e os defeitos fiquem claros para que todos possam corrigi-los”. Os atributos pessoais são supervalorizados como foram em outras épocas por candidatos apoiado pela direita, pelos meios de comunicação oligárquicos, pelo sistema financeiro especulador e banqueiros, concentradores de renda ou mesmo de avanços do processo democrático como a união estável homoafetiva.

O comando de um governo em prol de pauta de caça a corrupção de assemelha ao título de Jânio Quadros na década de 1960, com sua vassoura e seu aspecto plástico de simplicidade, humildade e força contra o “mal da corrupção”. O enunciado: “É intolerante com a corrupção. A nova governança que será instalada em Brasília, baseada em princípios republicanos, é a única capaz de enfrentar e derrotar a corrupção no país.” É um discurso frágil e direcionado no princípio semelhante ao lema de Collor de Mello após a redemocratização: “Caçador de Marajá”. Ora, aconteceu com este e com Jânio e parece se repetir com Mariana Silva, “a messias”, a oportunidade de esvaziamento da política, com pautas elitistas, apoio do sistema de comunicação oligárquico e do sistema bancário rentista, numa volta de dom Sebastião capitalizado e potencializado pela tragédia neoliberal.

Assim, nessa conjuntura se pergunta: qual político o povo quer comprar? Pelo que se percebe, a questão não é só o discurso político e sua imagem. Não é mais um momento de desinformação, a questão é a informação que se tem, ou melhor, a formação de cada sujeito social filiado a determinadas posições políticas. No Brasil, o que se tem são os problemas estruturais que se multiplicam no combo do subdesenvolvimento, numa fragilidade econômica, social e política que cria uma falsa representação de república, ou mesmo um arremedo institucional que cria falsas esperanças. Por fim, é salutar hoje a frase na porta do inferno que Dante escreve na Divina Comédia: “Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança.”

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Moisés dos Santos Viana é jornalista e professor de Comunicação