Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quando o tom catastrófico tomou conta da mídia

Em entrevista concedida ao repórter Elmo Gomes, o jornalista e professor Dalmir Francisco (Fafich/UFMG) propõe um exercício interessante de crítica da mídia: “O jornalismo que não toca nas nossas sensações não comunica com as pessoas”. Porém, para alcançar este objetivo, temos acompanhado, conforme salienta Dalmir Francisco, a atuação distorcida de jornalistas como animadores de auditório: “O que eles fazem é uma performance histérica, que não chega a ser sensacional, ela é mais histérica, ela é mais envolvida por uma espécie de dramatização por parte do apresentador do programa. Em cima de um fato, ele costuma colocar-se muito mais em evidência que o fato em si.” Assim, coberturas histéricas estão tomando conta do noticiário jornalístico.

O tom catastrófico tomou conta da mídia brasileira na cobertura da goleada sofrida pelo Brasil diante da Alemanha pelo placar de 7 a 1. Em partida válida pela semifinal da Copa do Mundo, os alemães deram um “passeio de bola” na seleção brasileira e se classificaram, com facilidade, para a final do torneio, no qual se sagrariam tetracampeões diante da Argentina. “O pior fiasco verde-amarelo da história” foi classificado pelo Correio Braziliense, na edição de 9/7/2014, como “um vexame para a eternidade”. Esta alarmante manchete, destacada em letras garrafais, deu título a uma crônica dramática, assinada por João Valadares, que tomou conta da capa do jornal.

O cronista adotou um viés exagerado para “pilhar” ainda mais o fatídico episódio, colocando-o como grande desastre ou verdadeiro trauma. Convém, entretanto, lembrar que vitórias e derrotas fazem parte do dia-a-dia do esporte. Futebol não é guerra, é festa! O espírito esportivo zela pelo fair play. Sucessos e reveses servem de aprendizado e estímulo para o constante aperfeiçoamento. É preciso saber ganhar. Faz-se necessário saber perder também. Infelizmente, o cronista do Correio Braziliense preferiu a linha da cobertura histérica do fato. Em tom póstumo, João Valadares decreta a morte da pátria de chuteiras, sem se atentar para o fato de que nenhum resultado esportivo, por si só, sela de vez o destino de um povo: “Há quem diga que o futebol explica a vida. Eu sou um deles. E, se você concorda comigo, terá que admitir que ontem morremos. E não foi morte morrida. Foi morte matada mesmo, meu caro João Cabral de Melo Neto. De tão dolorida que não se entende. Não morremos para sempre, é verdade, mas morremos. Aquela morte que ataca até gente não nascida, poeta. Quem nascer hoje, amanhã, depois e por muito tempo, no Brasil, vai carregar nas costas o cadáver do Mineirão.”

“O jogo é o contrário do sério”

Surge aqui o remake nelsonrodrigueano do complexo de vira-latas. Mesmo sendo o maior campeão mundial de futebol, com cinco títulos, tal façanha não é o suficiente para nos sustentar no lugar de potência do esporte bretão. O Brasil tem dificuldade de se ouvir na palavra sucesso. Era como se o triunfo alemão conseguisse riscar do mapa o que Pelé e Garrincha fizeram em matéria de futebol arte. Parece que, no piscar de olhos, desaprendemos a jogar bola e agora temos que tomar aulas de reforço ludopédico com os alemães. Eis a velha mania de ‘copiar’ a Europa, como se tivéssemos vergonha do nosso DNA peladeiro, no sentido positivo da inovação e criatividade. “Não somos Manés! Somos todos Garrinchas!”, já dizia o poeta Nicolas Behr, em seu fabuloso Brasília-z: cidade-palavra (2014). Ao crucificar os jogadores e a comissão técnica isoladamente, deixamos de atacar o “X” do problema, conforme apresenta Oliveira de Panelas, poeta de cordel e autor do texto “A corrupção” (2001): “A seleção do Brasil/Tem seus craques mafiosos/Uma nova CBF/De atletas perigosos/Com a sigla Corrupção/De Brasileiros Famosos”. Desmandos da cartolagem oligárquica e da mídia marqueteira se avolumaram ao longo dos tempos até que o mundo das quatro linhas não conseguiu mais ficar imune às ações ilícitas cometidas em seus bastidores.

Triste sina não é carregar nas costas o cadáver do Mineirão, como sentencia João Valadares. Como bem adverte o poeta Augusto dos Anjos, em “O solitário” (1912), a morte desmistifica o corpo e sua materialidade soberbamente reverenciada. No frigir dos ovos, somos “o pergaminho singular da pele/e o chocalho fatídico dos ossos”. Nada é eterno, tudo é passageiro. Existem, sim, marcas, cicatrizes, assinaturas de um passado que requisita atenções do presente e do futuro. Porém, perder uma partida pra Alemanha não se compara, em desgosto histórico, aos sucessivos jogos que perdemos, como nação, para aquela manha. Carregar nas costas, até hoje, o cadáver de Brás Cubas, se mostra, de fato, uma prática inaceitável e traumatizante. Ao cultivarmos a mediocridade como ele, desperdiçamos o nosso talento crítico. Promove-se, assim, um mercado de nulidades célebres que rezam na cartilha do referido personagem machadiano. Representante genuíno de uma orientação narcisista e corrupta, ele confessa um triste hábito comportamental que ainda nos afeta socialmente: “Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim a minha ideia [Emplasto Brás Cubas] trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: amor da glória.”

Logo, cair futebolisticamente diante da Alemanha não deve ser tratado como uma tragédia colossal. É apenas um jogo. Assim sendo, “o jogo é o contrário do sério”, como frisa Renato Janine Ribeiro, na coluna “Olho grego” (Filosofia, jul. 2014). Temos, portanto, prioridades realmente importantes. Na esteira de Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico com saudosa lembrança esta Copa do Mundo.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor e jornalista