Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A vítima gremista da hipocrisia brasileira

O que a mídia nacional, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e boa parte da sociedade estão fazendo com a vida de Patrícia Moreira, a gremista que proferiu insultos de cunho racial ao jogador do Santos, o goleiro Aranha, o qual chamou de “macaco”, é mais absurdo do que qualquer injúria que se possa endereçar a um ser humano.

É óbvio que a conduta infeliz da torcedora – ao ofender o goleiro de uma forma tão vil, em tempos onde o país e o mundo buscam equilibrar as desigualdades e compensar as injustiças – deve ser passível de punição, pois além de estimular o coletivo ao redor a fazer coro às ofensas, a fim de desmoralizar a vítima, contribui para mostrar o quanto ainda estamos atrasados quando o assunto é preconceito.

Essa punição, quanto ao crime de injúria preconceituosa, racial, está contida em nosso Código Penal e prevê pena de reclusão de um a três anos e multa. Portanto, fica claro que nossos legisladores, representantes de toda a sociedade e eleitos por ela, trataram de penalizar quem incorre nesse tipo de atitude, responsabilizando devidamente, com o intuito de evitar que tais atos se tornem frequentes.

Além da responsabilidade penal, Patrícia Moreira pode ser condenada civilmente e ainda indenizar por dano moral, ou seja, tirar dinheiro do bolso para pagar por aquilo que fez. Em suma, a jovem tem duas esferas para responder – o que é justo; afinal, todos temos que responder por nossos atos. Porém, o que mais está punindo a garota não são essas duas justas formas de responsabilidade, e sim a irresponsável mídia brasileira, aliada aos falsos moralistas do politicamente correto.

O comum virou crime

Se temos um Estado para nos proteger diante das injustiças e dos excessos; se temos previsão legal para coibir práticas e responsabilizar atos, por que é que a mídia brasileira e a sociedade insistem em execrar, julgar e condenar as pessoas ao bel-prazer, sem limites, abusando do sensacionalismo e não se importando com a vida das pessoas daí para frente? Tudo isso em nome de cliques e audiência? A resposta é sim. Estamos em uma era da irresponsabilidade, do jornalismo mesquinho, da luta incessante por audiência, da busca frenética pelas vendas e da alimentação constante de uma sociedade sedenta por sangue e com sede de vingança.

A expressão “sede de vingança” é adequada e digo por que. Patricia Moreira não foi a única torcedora do mundo, do país, do Rio Grande do Sul, de Porto Alegre, do Grêmio, a chamar um negro de “macaco”. Atitude racista? Sim. Passível de punição? Claro. Mas expor a vida da menina como se ela representasse um mal a ser evitado pela sociedade; expô-la como exemplo de mau-caratismo, com destaque em capas de jornal, manchetes televisivas e revista digital semanal de maior audiência, como ícone de conduta abominável?

Há cerca de 10 anos ou pouco mais, chamar um amigo ou colega negro, de neguinho, negão, macaco ou demais denominações que se refiram à cor da cor da pele, em tom de humor, não era considerado ofensa, nem causava desconforto aparente. O próprio Mussum, do quarteto Trapalhões, fazia inúmeras piadas a respeito da cor de sua pele. Nos Estados Unidos, há séries e diversos programas sobre negros que fazem piadas sobre brancos e sobre eles mesmos. Da mesma forma, chamar de gordo, magrelo, branquelo, dentuço etc. eram de certa forma comum; atualmente é bullying, segregação, ofensa e, portanto, crime.

Fazer justiça, mas com injustiça

Isso veio mudando de uns tempos para cá, sobretudo quando começou a ser previsto ou cobrada punição como crime. É de certo modo justo, temos mesmo que evoluir, os abismos que havia entre as raças, o preconceito gigante e tudo o que envolveu resultou que hoje vemos a necessidade de dar um basta. Entretanto, o processo é lento, demorado, e querer que todo preconceito seja abominado de uma hora para outra é inconcebível, já que ninguém simplesmente deixa de pensar algo que está em seu inconsciente do dia para a noite. Mais inconcebível ainda é usar como marketing negativo um ser humano que cometeu um erro e que terá a justa penalização legal pelo seu ato.

Além de responder criminalmente e civilmente, essa menina está sendo humilhada em redes sociais, exposta a estímulos negativos incomensuráveis. Além disso, perdeu o emprego, perdeu a reputação, perdeu a tranquilidade, perdeu a autoestima e sem dúvida terá consequências psicológicas para o resto da vida.

É aí que me pergunto: até onde vai o direito de informar? Até onde vai o direito de privacidade? Até onde é informação? Onde começa o sensacionalismo? Na crescente das minorias que lutam pelo seu espaço, temos também feministas e homossexuais. Pegando por este viés, será que as emissoras vão filmar algum torcedor xingando jogadores de filho da p., ofendendo a moral de sua mãe? Será que flagrarão algum outro chamando juiz de “viado” para puni-lo igualmente por conta do preconceito?

Ah! Mas xingar o juiz é normal, ele sabe que não é homossexual. Mas, e se fosse? Mas a mãe do jogador sabe que não é prostituta. Então, por isso, pode? Da mesma forma que é usual no futebol brasileiro e de todo o mundo xingar juiz e jogadores de “viado”, bicha e filho daquela, com o propósito que sempre teve, diminuir o adversário ou mostrar descontentamento com alguma atitude, assim o foi com o “macaco” de Aranha. Ninguém se recorda da torcida mexicana fazendo coro atrás do gol gritando em uníssono “puto”, para incomodar o goleiro? Ou seja, puto “pode” (não merece julgamentos da justiça midiática), macaco não.

O grande erro esteve na forma como o assunto foi explorado pela imprensa e como expuseram a menina. Vejo uma imprensa querendo fazer o papel da justiça, mas com injustiça, olha que contraditório. Flagrou a menina, expôs de forma irresponsável e exagerada, para que a sociedade hipócrita a degolasse em praça pública. Além da punição penal, civil, midiática e da condenação de boa parte do país, Patrícia Moreira ainda recebe um não no pedido de desculpa ao goleiro Aranha. E tudo isso, porque somos todos macacos, imaginem se não fôssemos.

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Fernando Murillo Machado é jornalista e estudante de Direito