Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Coragem para enfrentar o preconceito

Um jornal que pretenda ser fiel à tradição iluminista de esclarecimento precisa enfrentar temas polêmicos, para pelo menos tentar levar o público a refletir. É difícil, porque contraria as expectativas da parte mais conservadora desse público, mas é absolutamente necessário.

As críticas recorrentes à grande imprensa neste Observatório demonstram que essa premissa é sistematicamente descumprida. Mas, quando se realiza, é sinal de que ainda se pode alimentar alguma esperança.

O Globo proporcionou esse alento na semana passada, ao publicar, na sexta-feira (19/9), reportagem sobre aborto (ver aqui) e editorial no dia seguinte (aqui) condenando a hipocrisia em relação ao assunto, apresentado como problema social e caso de saúde pública.

Uma tragédia, um tema

A reportagem parte de uma tragédia para iluminar um tema: no dia 26 de agosto, Jandira dos Santos Cruz, de 27 anos, saiu de casa para fazer um aborto e não voltou. Diferentemente do que ocorre nas clínicas ilegais da Zona Sul do Rio, o procedimento seria realizado numa casa, num condomínio na Zona Oeste, improvisada para esse fim. A moça provavelmente morreu durante a operação. Exames de DNA ainda vão comprovar se é dela o corpo carbonizado e mutilado encontrado no dia seguinte.

A cobertura televisiva se resumiu aos aspectos criminais e à exploração emocional do caso. Reportagem da TV Globo, por exemplo, expôs a mãe da jovem, prostrada, deitada no sofá, incapaz de nada além de balbuciar algumas palavras e chorar.

O jornal agiu de outra forma. Começou a noticiar a história no dia 4/9 sem ceder a apelos melodramáticos e apresentou um início de debate em 12/9, quando abriu página inteira para a prisão dos primeiros acusados, num box com especialistas e na coluna de William Helal, “Panorama Carioca” (ver aqui). Dias depois (17/9), seria a vez de Flávia Oliveira dedicar sua coluna a propor uma “Lei Jandira” (aqui). Finalmente, publicou a reportagem, na rubrica de eleições, para mostrar que esse tema vem sendo ignorado pelos principais candidatos à Presidência, e o enfatizou no editorial do dia seguinte.

O exemplo do Uruguai

Certamente a matéria poderia ter sido mais ampla, poderia ter informado sobre o que ocorre em outros países, particularmente no Uruguai, onde o aborto foi descriminalizado em outubro de 2012 e não consta que tenha havido uma explosão dessa prática. Seria uma boa forma de confrontar o argumento da juíza que defende a lei atual e considera que a descriminalização “iria transformar o Brasil numa selva” (ver aqui). Inclusive porque uma nova legislação nessa área teria de ser associada a políticas de educação sexual e de disseminação de métodos anticoncepcionais, que não são importantes apenas para se evitar a gravidez, mas doenças sexualmente transmissíveis, sobretudo a Aids.

Se olhassem para jornais uruguaios, veriam que, ao contrário do que ocorre aqui, onde os candidatos fogem do tema como o Drácula da luz, lá os resultados da decisão de descriminalizar o aborto impõem-se como pauta da campanha: o candidato à sucessão de José Mujica, aliás, declarou em abril que preservará a lei, caso eleito (ver aqui). Reportagem de agosto mantém a questão em alta (aqui).

O exemplo antigo de Veja

Mas essas são pequenas observações que permitiriam avançar além daquilo que foi exposto nesta mais recente iniciativa de enfrentar o tema por aqui. Para nenhum jornal é fácil tomar uma decisão que sabidamente desagradará a parte mais conservadora de seu público. A propósito, é curioso que, pelo menos aparentemente, essa opção não tenha resultado em protestos: apenas duas cartas de leitores foram publicadas, ambas favoráveis à linha editorial adotada. No site, as matérias não foram abertas a comentários.

Ao longo do tempo, esse tema tabu foi encarado algumas vezes. Raras com tanta felicidade como a reportagem de Veja de 17/9/1997, acessível no arquivo digital da revista, que misturou na capa fotos de mulheres famosas no mundo do jornalismo e da cultura com outras mulheres sem expressão pública e resumiu no título “Eu fiz aborto”. Foram nove páginas, além do editorial “Coragem de falar do proibido”. O gancho, então, era a regulamentação do aborto para casos de estupro ou risco de vida para a mãe.

Mais uma tragédia

Na segunda-feira (22/9), o Extra informa que Elizângela Barbosa, 32 anos, foi encontrada morta em Ititioca, na periferia de Niterói. O motivo foi o mesmo do de Jandira. O procedimento, também: aguardar num ponto que a levasse a um local onde faria o aborto.

Jandira tinha duas filhas. Elizângela, três.

Podemos optar entre a Lei Jandira ou a Lei Elizângela. Ou qualquer outra para esse batismo tardio, que tantas há por aí, perdidas, dispersas, sem registro, sem notícia.

Não se sabe quantas outras reportagens serão necessárias até que se comece a furar o bloqueio siderúrgico para o debate dessa questão. Mas é o que resta ao jornalismo: insistir no tema, para que outras tragédias não se repitam.

******

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)