Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Vilã se distancia da crueldade e descamba para comédia

Durante trinta e três segundos, a chamada de estreia de Império prometia: “Ela não conhece o amor, nem a compaixão. É capaz de tudo para enriquecer.” Ela, no contexto, é Cora, personagem a que a atriz Marjorie Estiano deu vida na primeira fase da novela das 21h da Globo e que agora, na segunda fase, cabe a Drica Moraes desenrolar. Nesse primeiro contato com o público, numa jogada pretensiosa da equipe de edição, com a captura de efeitos e diálogos que logo de cara impressionavam, a intérprete foi apresentada como uma vilã temida, daquelas de tirar o posto ou, no mínimo, se juntar ao time barra pesada de vilões da teledramaturgia brasileira.

A técnica deu certo. Cora, com pose de tia fiel e batalhadora, foi ovacionada no Twitter, virou meme no Facebook e fez com que o telespectador – sem real necessidade disso, mas inevitavelmente difícil de não acontecer – a comparesse como um caso de incorporação das vilãs Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) e Carmem Lúcia (Adriana Esteves). Passado um mês de estreia, o que era para ser a volta da mais nova grande vilã do horário nobre, se tornou apenas em mais uma personagem clichê que se acha injustiçada pela vida de pobre que leva, passou a agir lentamente, muito mais persuadindo com seus diálogos astutos e maquiavélicos, do que se envolvendo em ações mais densas.

O resultado, como já esperado para figuras que seguem este caminho, é que o rumo que a tão prometida vilã tem na trama não fisga a atenção dos espectadores porque não suscita qualquer expectativa com suas armações. É claro que em nada tem a ver com a interpretação de Drica Moraes, que é uma atriz brilhante, capaz de passar da comédia para o drama com grande maestria, e que cumpre muito bem o papel, convencendo em todas as cenas e se sobressaindo na expressão vocal.

O grande responsável pela dicotomia da personagem é o autor Aguinaldo Silva. De um lado, ele sai ganhando ao desenvolver muito bem o tipo de Cora, mulher simples, dona de casa, religiosa, que se diz pura, com pouca maquiagem e mínima preocupação com a aparência, que vive do salário de aposentadoria, humana a ponto de reclamar do pouco dinheiro de casa e da falta do iogurte do sobrinho. É através dessa imagem conservadora que ela tenta manipular os personagens o quanto pode. É o oposto da vilã loira, bonitona, de salto alto e batom vermelho que, de tanto ser retratada dessa forma nos outros folhetins, já tem a gravura desgastada e banalizada.

Uma vilã engraçada, amalucada

Só que, por outro lado, Silva é infeliz ao não entregar situações embaraçosas que forcem a vilã a se meter em grandes enrascadas e, como de praxe (e para felicidade geral da narrativa), a esconder toda a sujeira de seus crimes debaixo do tapete, tal qual fez com Nazaré, em Senhora do destino (2004). É o que daria gás. Ao invés disso, a personagem ouve conversa atrás da porta, come enquanto maquina, segue um ou dois personagens na rua, se aproxima do alvo, usa o escolhido da vez como isca… Tudo com o propósito de abocanhar parte do dinheiro de José Alfredo (Alexandre Nero) que, segundo ela acredita, é pai de Cristina (Leandra Leal), fruto de um relacionamento proibido no passado com Eliane (Vanessa Giácomo/Mallu Gali), irmã dela. O texto de Cora é o da vilã morna que muito lembra e até ficaria bem em um desenho animado do que no horário nobre da emissora carioca.

Enquanto alguns núcleos como o de Cris Vianna, Marina Ruy Barbosa, José Mayer e Nanda Costa têm suas tramas aceleradas, todos os passos que Cora dá na novela servem como uma ponte que mais cria barriga na história do que dinamiza. Não existe a radicalização da vilã porque, diferente dos bandidos dos outros folhetins em que a explicação pela maldade é dada por traços de psicopatia, ciúme, posse, loucura ou vingança, Cora, como o próprio novelista revelou em entrevistas, não tem razão para ser má, ela apenas gosta de ser e ponto. Talvez por isso ela não entrega. O problema é que não basta ser malvada, há que declarar os malfeitos, há que dizer em voz alta as palavras do desprezo pelos personagens ingênuos, bons, justos, donos da verdade e da moral, há que agir sem escrúpulos.

A única cena marcante de verdade da vilã, até agora, foi a que ela chama a irmã de covarde, fraca, burra e idiota, nega socorro, ri e chora ao mesmo tempo, ao vê-la morrendo de câncer na cama do quarto. Depois disso, nada mais impactante foi feito, e a vilã descambou para o lado da comédia, tal qual aconteceu com Shirley (Viviane Pasmanter), da novela Em Família, e com Félix (Mateus Solano), de Amor à Vida. Parece ter virado moda vilão ter a necessidade de ser engraçado, amalucado.

Falta uma boa alternativa

Uma das tarefas mais difíceis da telenovela, nos dias de hoje, é fidelizar o espectador. A figura do vilão, na maioria das vezes (para não dizer sempre), é que tem feito o público criar a necessidade de ligar a televisão todos os dias. É o vilão quem desafia e carrega o enredo nas costas. Pelo que é visto, só o romance dos mocinhos não segura mais.

É preciso mais do que o suspense em relação aos destinos dos personagens, é preciso gozar da crueldade, ver a maldade escancarada, vê-lo pagando pelos crimes cometidos. Tudo porque o público trabalha bem com ambiguidade: ora quer odiar o vilão, ora quer venerá-lo. Como se, em algum determinado momento, fosse complicado separar ficção de realidade. A trama que não atinge essa expectativa emocional não vinga ou só é assistida por hábito ou por falta de uma boa alternativa.

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Murilo Melo é jornalista