Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Elogio ao tradutor

Uma turnê de promoção de meu romance mais recente, Herejes (“Hereges”, em espanhol), me levou a várias cidades e livrarias da França, país onde, por sorte e tradição, ainda existem leitores.

E onde ainda sobrevivem, como espécies em perigo de extinção, os livreiros independentes, os de sempre, aqueles que são capazes de sugerir leituras de acordo com o gosto de seus clientes habituais, que eles quase nunca decepcionam.

Um fato significativo me aconteceu durante uma sessão de autógrafos no salão do livro de Besançon.

Uma senhora na casa dos 40 anos se deteve diante de meus romances e, em silêncio, os foi manuseando um por um, lendo o resumo na contracapa.

Parecia que meus livros de romancista cubano a interessavam, ou pelo menos despertavam sua curiosidade. Quando terminou de examinar os livros, a senhora me olhou e, como se eu fosse o culpado de algo terrível, disse para mim: “Eu leio muito, mas nunca traduções”, e foi embora.

A rápida retirada da leitora que não lê traduções –suponho, por ela ser francesa, que leia apenas autores dessa língua– me impediu de lhe perguntar algo tão elementar como se, declarando-se grande leitora, nunca tinha lido a Bíblia, por exemplo, pois imagino que entre suas habilidades não deve estar incluído o domínio do aramaico e do grego antigo, idioma este que, se lhe fosse desconhecido, também a teria impedido de ler Sófocles e Eurípedes, Homero e Aristóteles.

Apenas se fosse poliglota excepcional a senhora poderia ter lido Dante, ter dominado o estilo intrincado de Shakespeare, ter lido Tolstói, Dostoiévski e todo o contingente russo do século 19, ou ainda, dando um grande salto no tempo, Saramago ou o sueco Mankell.

Francês límpido

Como é sabido, a cultura é uma criação da civilização humana, e a literatura é uma de suas expressões mais abrangentes. Através dela sabemos –ou chegamos perto de saber– como fomos e como somos os homens em diferentes momentos da história e da geografia.

A cultura, então, não poderia prescindir de um personagem muitas vezes ignorado, desvalorizado e até vilipendiado, que é o tradutor: esse intermediário capaz de lançar pontes entre uma obra e seus leitores de outra língua.

Sem o trabalho dos tradutores, o conceito de cultura universal nem sequer existiria: seríamos apenas seres autofágicos, ignorantes da diversidade existente mais além de nossas fronteiras linguísticas ou geográficas. O mundo simplesmente não seria o que é.

Para meu alívio, poucos minutos após a passagem fundamentalista da leitora monolíngue chegou à mesa onde eu autografava livros um senhor de cerca de 80 anos que se movimentava em uma cadeira de rodas. Depois de me pedir uma dedicatória em Herejes, ele me reconciliou com o mundo quando me disse, em francês límpido: “Fiquei encantado com seu romance El hombre que amaba a los perros. E tenho que lhe dizer que o senhor tem tradutores formidáveis. Li o livro em espanhol e depois em francês e foi um prazer igual nas duas línguas.” Graças aos tradutores!

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Leonardo Padura é escritor e jornalista cubano