Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A história de uma cidade nas páginas do jornal comunitário

Entender a importância da história de uma cidade é vital para sua comunidade. Foi com base nesse pressuposto que os responsáveis por um semanário da cidade satélite de Guará, no Distrito Federal, se empenharam para colocar à disposição dos seus leitores mais de 650 edições digitalizadas do Jornal do Guará, o periódico mais antigo do Distrito Federal, fundado em março de 1983. É um acervo que retrata cada um dos personagens e fatos que fizeram o que o Guará é hoje. Está tudo lá, sem intermediários (ver aqui e aqui).

A cidade foi construída nos anos 1970 e consolidada lentamente ao longo dos anos 80. O Jornal do Guará documentou a construção dessa comunidade, suas particularidades e seus símbolos. O veículo, mesmo com as dificuldades e carências iniciais, foi narrador e protagonista da construção de uma das cidades mais bem equipadas e com melhor qualidade de vida do DF, posicionando-se com a comunidade em torno de questões que atingiam a cidade diretamente, como as mudanças arquitetônicas, a consolidação do parque ecológico, o desenvolvimento local, a gestão política e a visão cultural.

Ao longo desse tempo, o processo artesanal para montagem de um jornal mudou. Os fotolitos, as montagens, a datilografia, as revelações são agora obsoletos. O JG está hoje na rede mundial de computadores e chega à casa de qualquer pessoa em segundos, assim que a notícia acontece. A edição impressa se mantém forte, com tiragem de …. exemplares semanais. Mas a versão digital, no site www.jornaldoguara.com ou nas redes sociais, chega a milhares de leitores em segundos. A essência do jornalismo é a mesma, assim como a essência do JG, um modesto jornal comunitário que sobreviveu à massificação dos meios de comunicação.

Pertencimento

Jornalismo é a história contada no exato instante em que acontece. Folhear o JG, desde a sua primeira edição, é entender a história da cidade, compreender os fatos que levaram à sua fotografia atual. É reviver a importância da missão de criar as condições para que uma comunidade, ciente de sua história, tenha orgulho de passado e presente. Aflora em uma população bem informada a sensação de pertencimento a uma comunidade e, por consequência, suas capacidades de desenvolvimento social e econômico são potencializadas. Assim, a trajetória do jornal confunde- se constantemente com a trajetória do Guará e ambas são escritas na voz futura. Ao relermos o passado contado como a novidade incrível, como o que está para acontecer, lida-se com o ápice da incerteza dos dias que virão.

Em cada edição desses 31 anos, o JG contou os acontecimentos e, principalmente, revelou os planos de nossos cidadãos e governantes. Tornou públicos os projetos de desenvolvimento, as ideias dos guaraenses, as aspirações políticas, as indagações das lideranças e as previsões para um futuro que passou. Ou seja, as notícias que relatavam há 31 anos os projetos vindouros agora são história. Alguns projetos, previsões e ideias nunca aconteceram. Outros se tornaram o que nos orgulhamos de hoje chamar de Guará. O JG, baseado no que sabia, fez também suas previsões. Quantas vezes aspirou desvendar o nome do administrador antes do anúncio oficial, ou tentou entender os próximos investimentos do Estado, ou como nossos cidadãos se comportariam. Acertou algumas vezes. Mas errou muitas e provavelmente continuará a errar. Essa futurologia lógica, esse historiar o presente é que faz do jornalismo peça fundamental no desenvolvimento de qualquer povo. Traz à tona a grandeza de tornar público o que é privado, de dar a todos o poder da informação.

Em busca da história da cidade podemos agora nos deparar com a narrativa da consolidação de uma cidade no Brasil. Um fato raríssimo, possível no Distrito Federal por conta da sua recente fundação. Quando a primeira edição circulou, a cidade do Guará tinha apenas 14 anos. Imagine quantas vezes isso foi possível. Um veículo de comunicação narrar o crescimento de uma cidade inteira desde os seus primeiros anos. Percebe-se que as páginas guardadas das edições antigas do JG continham o passado narrado em tempo presente, uma perspectiva diferente de se olhar o passado. É uma ferramenta para os estudantes e, principalmente, para os líderes e os governantes, para que conheçam bem o passado a fim de compreender os problemas presentes.

A abertura do acervo

A fase inicial do trabalho de abertura dos arquivos, uma iniciativa que marcou os 30 anos do jornal, consistiu na coleta e processamento dos dados. Buscou-se recuperar o acervo e digitalizar uma parcela substancial deste. Em um ano, foram digitalizadas as edições completas dos primeiros cinco anos do Jornal e as capas de todas as edições até hoje.

O Jornal do Guará foi montado artesanalmente nos seus anos iniciais, como eram todos os jornais impressos. Antes da informatização e dos softwares de diagramação eletrônica, máquinas de escrever, estiletes, fotolitos, fitas e mesas de luz eram as ferramentas para a montagem de um jornal. Pela perenidade desse material, os originais em fotolito já não existem. O arquivo das edições do Jornal do Guará consiste dos originais publicados, encadernados em livros divididos por anos de publicação. Outras edições, principalmente a partir do início do século 21, estavam disponíveis em arquivos digitais. Mas, como as mídias onde se gravam arquivos (CDs, zipdrives e flashdrives) são mais frágeis que o papel e resistem menos à ação do tempo, muitos arquivos se perderam. A solução foi buscar as edições impressas desses números também.

Em uma segunda etapa, propõe-se a construção de produtos com o material reunido. Produtos que podem facilitar o acesso a este acervo. Ao digitalizar o material e promover a sua livre distribuição, foi criada a possibilidade de multiplicação infinita dos documentos. E no intuito de dar acesso universal, resolveu-se reunir o acervo, organizado cronologicamente, em uma galeria composta pelas edições digitalizadas.

O primeiro passo foi disponibilizar essa galeria via internet. Para isso a solução mais viável foi a criação de uma página eletrônica própria do Jornal do Guará para disponibilizar os arquivos em ordem cronológica. Pelo tamanho dos arquivos é igualmente necessário criar-se a possibilidade de gravar esses arquivos em disco pessoal, permitir o download e também facilitar o acesso a essas edições através de aparelhos móveis, como smartphones ou tablets.

A compatibilidade com dispositivos móveis é essencial, já que a mobilidade é apontada como a principal tendência do mercado de comunicação atualmente, como aponta a empresa global de consultoria de gestão Bain&Company no seu relatório Publishing in The Digital Era (2011). Essa pesquisa demonstra que até 2015, de 15% a 20% da população mundial terá nos arquivos digitais suas principais fontes de leitura.

Segundo a Bain&Company, há barreiras ainda difíceis de transpor quando pensamos em jornais e livros em mídias digitais. O estudo aponta que 41% das pessoas não aderem à nova tecnologia simplesmente porque não querem abandonar a “experiência do papel”. Outras dificuldades importantes são o preço dos aparelhos e a baixa disponibilidade de títulos, comparado ao número de títulos impressos.

O estudo da Bain&Company abrangeu 3 mil pessoas em seis países considerados desenvolvidos: Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, Coréia do Sul e França. Quando se perguntou sobre o conteúdo das informações mais lidas pelos leitores em mídias digitais, o resultado apontou que 43% do material consumido são compostos de notícias locais. Coberturas especiais ou investigativas interessavam a 36% dos entrevistados, seguidas de negócios (29%), esportes (27%), entretenimento (9%) e classificados (7%). Essa pesquisa mostra a valorização dos veículos de comunicação com foco geográfico em suas versões digitais.

Aplicações da história

Ainda que se trate de um compêndio de edições físicas, facilitando sua categorização por dados numéricos, é na subjetividade do seu conteúdo que reside o material a ser estudado. Por isso, o caso a ser apresentado é o conteúdo do acervo de edições e seus desdobramentos sociais.

O propósito não é analisar minuciosamente os documentos componentes do acervo do Jornal do Guará, mas criar a possibilidade de outros terem acesso a essas informações. E a partir daí encontrar coletivamente análises da história da cidade, do percurso do JG e, principalmente, encontrar finalidades práticas para a documentação histórica dos anos fundamentais de uma cidade, quando se afirmou como tal e consolidou suas principais características. É entender a importância da história de uma cidade para sua comunidade.

Propõe-se a partir da abertura deste acervo, a construção coletiva de finalidades para o mesmo. Sejam elas para entender a formação do Guará, a evolução do jornalismo comunitário nos últimos 30 anos ou para rever decisões que deram forma à nossa comunidade de maneira isenta dos preconceitos formados pelo tempo. É um meio de analisar as ideias passadas quando ainda eram frescas, as que deram certo e as que falharam.

As edições históricas do JG podem ser utilizadas nas salas de aula, como fonte de informação para elaborar novos rumos para cidade ou como um instrumento para matar a saudade de outros tempos.

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Rafael Souza é jornalista brasiliense e escreve no Jornal do Guará e na Folha de Águas Claras, veículos comunitários do Distrito Federal.