Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A fantástica fábrica de chocolate

1. O que é a política? A política como bem o sabemos é o espaço da relação entre os muitos, razão pela qual é uma questão de múltiplos. Não é circunstancial que a corrupção, sempre uma questão de números, é tanto mais evidente, logo uma questão política, quanto mais números à direita incluir, não sendo por acaso que seja uma questão de rico, pois todo rico é ladrão, à direita; e todo pobre, à esquerda, é roubado.

2. Mas o que é mesmo a política? É uma questão, ouso dizê-lo em época niilista, eminentemente maniqueísta. O problema, pois, da política é a existência de ricos e de pobres. Não existe outro. E tudo mais que esconde ou tergiversa essa questão é falsa ideologia a serviço dos ricos.

3. Existem dois modos, pois, de compreender e viver a política. A política dos ricos e a política dos pobres. As mediações ou o que vem no meio (e estamos todos no meio disso) nada mais são que jogo/luta ideológica entre a política dos pobres e dos ricos, orquestrada em termos de relações de força realmente existentes.

4. Como vivemos numa sociedade oligarca, é a política dos ricos que prevalece por todos os lados. Esse é o motivo por que o pobre não pode ficar preso às relações de força para agir ou deixar de agir, politicamente. Dizer que não é possível tal ou qual coisa porque as relações de força não são favoráveis é precisamente fazer o jogo da política dos ricos.

5. Quando as relações de força são totalmente desfavoráveis, temos a obrigação de agir. Mas não de qualquer modo. A ação política não pode jamais estar desatrelada de inteligência, do conhecimento das táticas e estratégias da politica dos ricos, nesse ou naquele arranjo sócio-histórico.

6. A política dos pobres, sempre revolucionária, o é verdadeiramente quando age a partir do conhecimento científico (e tudo é ciência) da política de dominação oligarca dos ricos, estabelecendo assim diretrizes e referenciais para teorizar e, coletivamente, orquestrar, agir.

7. Com milhares de anos de história oligarca nas costas, nos sacaneando, não existe política espontaneísta. Certa filosofia contemporânea (que leio e bebo na fonte) gosta de nos alimentar de espontaneísmos, tendo em vista um romantismo revolucionário que é parte e contraparte da tragédia liberal do e no contemporâneo, pois alimenta-se de rostos isolados como se fossem os protagonistas da política dos pobres mas que, mesmo que não o queiram, tenderão a ser transformados fatalmente em mediadores da política genocida dos ricos.

8. Os espontaneísmos são dispositivos mágicos que afetam antes de tudo as classes médias e estas nada mais são que uma mediação entre os ricos e os pobres: ora pendem por lado, o dos ricos, ora por outro, o dos pobres, sendo por excelência a classe em suspeição.

9. Essa ainda não é um a definição precisa de classe média, como classe de mediações. É e não é. No fundo e no raso, todos, os pobres, são classes médias que assim são definíveis, como mediação entre ricos e pobres precisamente porque cumprem a função ideológica de dividirem-se, como pobres, para melhor permitirem a dominação dos ricos.

10. As classes médias, portanto, só por existirem, são os pobres que não se admitem como tais. Eis porque, como classes médias, terão dificuldade, ser ou não ser, de decidirem entre os ricos e os pobres.

12. Outra forma de definir as classes médias é esta: são agregados dos ricos, compreendidos como os proprietários dos meios de produção num contexto planetário em que existe hegemonicamente um unidimensional modelo produtivo mundial: o da civilização burguesa, esta multinacional que se expande e se apropria de todos os outros meios de produção: naturais, econômicos, sociais, subjetivos, simbólicos, assim como as produções de classes sociais.

13. É nesse sentido que é possível dizer que todos tendemos a nos tornar classes médias da civilização burguesa, porque todos somos seus agregados, inclusive os donos dos meios de produção, pois de alguma forma igualmente nos produzimos no interior do capital, pelo capital, para o capital.

14. Essa definição de classe média como agregada da civilização burguesa e essa generalização de todos como pertencentes as médias classes agregadas de um modelo produtivo planetário, meios de meios, na mais-valia do e para o capital, distingue o imperialismo americano do europeu e mesmo de outras forças da e na modernidade.

15. Os Estados Unidos emergiram como potência imperialista dominante porque transformaram a própria civilização burguesa numa empresa mundial de produção de subjetividades, de humanos, de vidas.

16. O momento histórico dessa metamorfose integral da civilização burguesa em uma empresa planetária de biopoder ocorreu na Segunda Guerra Mundial. Nesta, o que estava em disputa realmente era o protagonismo imperialista da empresa mundial do capital, apta a transformar tudo em mercadoria, inclusive e até antes de tudo o humano – assim como si mesma.

17. A vitória do imperialismo americano não se deu, sob esse ponto de vista, durante a guerra, posto que a batalha seja sempre anterior. Os Estados Unidos são o país por excelência da civilização burguesa, compreendida como modelo de autorrealização de si como empresa mundial de produção de vidas, porque emergiram como potência imperialista experimentalmente apta a ocupar o trono da civilização burguesa em sua essência, que é na verdade o seu artifício: assumindo que o soberano da civilização burguesa é ela mesma como empresa mundial de produção de si, sem cessar.

18. Um filme singular para analisar a civilização burguesa como uma indústria mundial de si mesma sob a égide do imperialismo americano é A Fantástica fábrica de chocolate (2005), dirigido por Tim Burton. Em seu enredo, o excêntrico personagem Willy Wonka (representado pelo ator Johnny Depp), dono da misteriosa fábrica de chocolate, resolve disponibilizar cinco convites para cinco crianças que os encontrarem nos chocolates produzidos pela empresa, então tida e havida como a mais incrível do mundo. O desejo de conhecer a fábrica de chocolate por dentro foi publicitariamente explorado porque ninguém até então sabia como ela funciona. Uma febre de compra de chocolates ocorre e à medida que os convites são encontrados o sistema midiático possibilita ampla divulgação dos sortudos, com uma especificidade: das cinco crianças apenas uma, por ser pobre, não detém o perfil consumista: é o personagem Charllie Bucket, representado pelo ator Freddie Highmore, não sendo circunstancial que a versão em livro que inspirou o filme, publicado em 1964, seja Charlie e a fábrica de chocolate, a qual, para este ensaio, pode ser traduzida como Charlie, o pobre, e a civilização burguesa.

19. Com exceção, pois, de Charlie, as demais crianças detêm os seguintes traços: um menino gordo que não para de comer; uma menina presunçosa que se vangloria de bater sucessivosrecordes em mastigação de um mesmo chiclete; outra menina mandona, filha de um empresário e a este sempre exigindo que supra suas narcísicas vontades de consumo; e um quarto menino que passa a maior parte de seu tempo jogando videogames bélicos, tendo “vocação” para as ciências. Como se vê, cada criança representa um biotipo a ser produzido/reproduzido pela civilização burguesa.

20. O filme tem um narrador irônico, para não dizer cínico, que se ocupa ora em narrar as lembranças infantis e edípicas de Willy Wonka, ora em narrar a peripécia das cinco crianças no interior da fábrica. O momento em que esta abre o portão para que as cinco crianças “sortudas”, acompanhadas de seus respectivos país, entrem na fantástica fábrica de chocolate, todos são surpreendidos por uma espécie de carrossel de bonecos infantis (os filhotes humanos da civilização burguesa?) movendo-se ao ritmo de uma música até que finalmente pegam fogo, situação que é seguida simultaneamente pela gradativa entrada em cena de um trono vazio, que permanece intacto, sem ser minimamente atingido pelas chamas que derretem os bonecos como se fossem carnes em putrefação.

21. De repente aparece entre os convidados escolhidos o dono da fábrica, Willy Wonka. Uma criança então lhe pergunta: “Por que o senhor não está no trono?” A essa pergunta, Wonka responde: “Se estivesse no centro do trono não os veria sob múltiplos ângulos”, resposta que interpreto tendo em vista o seguinte argumento: o trono da civilização burguesa, à época do imperialismo americano, é ela mesma, sem centro, de modo que apenas assim seja possível que a burguesa civilização, como uma fantástica fábrica, possa fabricar-nos como se fabrica barras de chocolate, com seus contornos multidimensionais – o famoso design.

22. A partir desses argumentos, para retomar o fio anterior, suponho ser possível argumentar que somos todos agregados da civilização burguesa porque somos o produto ou o design de sua fábrica mundial de produção de mercadorias. Sob o trono vazio do imperialismo americano, a promessa demagógica para os agregados do mundo é: os pobres, no filme representado pelo personagem Charlie, podem se tornar os donos ou o trono da fantástica fábrica de chocolates da burguesa civilização, bastando que, para tal, acreditem no doce, fora de todos os sentidos, de seus produtos, tal como ocorre na cena em que o próprio Charlie diz: “A fábrica não tem que ter sentido porque o doce está fora de qualquer compreensão.”

23. Os pobres, pois, herdarão, a civilização burguesa quando não a entenderem e quando, portanto, só desejarem o doce demagógico da promessa de que seu vazio trono pode ser ocupado por qualquer um, isto é, pelos pobres – os verdadeiros agregados a serem conquistados, capturados, uma vez que as classes médias, como as outras crianças do filme, são seus agregados naturais, razão suficiente para serem apresentadas, no filme, como caricaturas descartáveis.

24. A fantástica fábrica de chocolate da civilização burguesa, portanto, sabe conhecer o interlocutor a ser capturado, adoçado: os pobres. Sua semântica de produção de adoçadas ausências de sentidos, o nonsense, tem como objetivo principal destituir os maniqueísmos entre pobres e ricos, razão pela qual a política dos pobres, no seu sentido revolucionário, é aquela que deve restituir os maniqueísmos a partir mesmo da destituição dos adoçados malabarismos mágicos da fantástica fábrica da civilização burguesa.

25. Para tanto, é preciso saber identificar o Willy Wonka da vez: o imperialismo americano, que nos observa de todos os ângulos, de cima para baixo, através de tecnologias ópticas, próprias para nos ver ao mesmo tempo à distância e perto, como as que existem nos aviões não tribulados, nos satélites, por exemplo; e também através de tecnologias hápticas, que são as digitais do e no teclado deste computador, as versões diversas de celulares, as redes sociais, porque só assim somos vistos por todos os lados, além de representados pela indústria cultural como o produto da captura ao mesmo tempo óptica e háptica – as mercadorias humanas adocicadas do capital.

26. Se se considera a eleição para presidente no Brasil, disputada no segundo turno pela atual presidenta, Dilma Rousseff; e pelo oligarca Aécio Neves, o que torna Dilma Rousseff vulnerável nos debates transmitidos pelas TVs corporativas é precisamente isto: não assumir integralmente o ponto de vista da política dos pobres, tendo em vista duas variáveis sem as quais toda política tenderá a se transformar em política dos e para os ricos, quais sejam: 1. a variável de que o principal tema latente de uma eleição para presidente em todos os países é a relação que o candidato terá com os Estados Unidos, caso seja eleito; e uma segunda variável ancorada numa crítica radical ao sistema midiático corporativo, por funcionar como tecnologia ao mesmo tempo óptica e háptica de captura dos pobres a fim de entregá-los ao carrossel em chamas do imperialismo americano.

27. O principal tema da campanha, portanto, é o trono vazio do imperialismo americano. Dilma Rousseff deve, pois, preenchê-lo argumentando, por exemplo, que as sucessivas campanhas midiáticas de denúncias de corrupção na Petrobrás tem como objetivo simplesmente o seguinte: entregar nosso petróleo para as multinacionais americanas.

28. Preencher esse trono, portanto, é a única saída para Dilma Rousseff se distinguir claramente de Aécio Neves, deixando claro que o candidato do PSDB não passa de um Willy Wonka a serviço da fábrica de chocolate do imperialismo americano.

29. Só assim Dilma Rousseff poderá transformar o nonsense dos debates em produção de sentido político comprometido com os pobres do Brasil, da América Latina e do mundo.

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Luís Eustáquio Soares é professor