Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O DNA marrom da mídia brasileira

É inegável que a cobertura eleitoral do jornal Folha de S. Paulo nas eleições de 2014 foi francamente enviesada contra a candidata Dilma Rousseff e seu partido, o PT. O gráfico de valências contrárias para candidatos, abaixo, não deixa dúvidas.

Folha

Dilma foi campeã de chamadas e manchetes negativas por quase todo período de campanha, com exceção de um breve momento quando Marina a ultrapassou levemente, e da última semana do gráfico, 12 a 18 de outubro, penúltima da campanha, quando Aécio pela primeira vez superou Dilma em negativos. Mas o gráfico da última semana da campanha, a que estamos encerrando hoje, mostra uma volta aos padrões anteriores, como podemos ver abaixo:

Folha semanal 2

Dilma recebeu 8 chamadas ou manchetes negativas enquanto Aécio ficou com somente 3.

Como já mostrei em outros textos, esse padrão de viés da Folha fica bem aquém daquele mostrado por seus congêneres, os jornais Estado de S. Paulo e O Globo. Só para ficarmos na cobertura da última semana [antes da votação de segundo turno], o Estadão publicou 32 matérias contrárias a Dilma frente a 8 contrárias a Aécio, somente em suas capas, e O Globo atingiu a marca de 27 a 4, para os respectivos candidatos. Mesmo que possamos argumentar que a proporção de negativos de Dilma em relação a Aécio não é tão diferente assim na Folha, quase 3 (8/3) e no Estado, 4 (32/8), o nível de politização da cobertura é bem desigual. O Globo e o Estadão publicam uma avalanche de notícias negativas, enquanto a Folha é mais parcimoniosa.

Mas no sábado [25/10], véspera da eleição, o jornal paulista radicalizou bruscamente seu comportamento. A manchete lê-se em letras garrafais, acima de uma fotografia enorme que traz Aécio e Dilma apertando as mãos no debate, “Doleiro acusa Lula e Dilma, que fala em terror eleitoral”, com o subtítulo “Ambos sabiam de desvios na Petrobras, diz delator; para Aécio, caso é ‘extremamente grave’”. A Folha dá eco ao “escândalo” noticiado pela revista Veja, que essa semana adiantou em dois dias seu lançamento com claro intuito de produzir impacto eleitoral. A Folha diz ter confirmado o vazamento da informação de que o doleiro tenha citado Lula e Dilma em seu depoimento, ainda que o depoimento seja sigiloso e o próprio advogado do doleiro negue o fato.

Tom panfletário

Logo abaixo da manchete vem a chamada “Corrupção e ataques mútuos dão o tom do último debate”. O texto que segue a chamada começa “As acusações de desvios da Petrobrás voltaram à tona…”, e inclui uma citação direta de Aécio Neves dizendo que Dilma patrocinou “a mais sórdida das campanhas”. Logo abaixo, outra chamada parece confirmar a acusação que Aécio faz: “Candidatos usam só 12% do tempo na TV para propostas”.

O contraste com a manchete de O Globo é gritante: “Sem ofensas, Dilma e Aécio duelam sobre corrupção”, com o subtítulo “Já nas perguntas de indecisos, candidatos discutiram mais suas propostas”. O resto da capa não é destituído de textos com viés anti-Dilma, mas esse não é bem o tópico aqui. A descrição que segue na capa de O Globo é bem mais fidedigna daquele que parece ter sido na verdade o debate do segundo turno em que mais se falou de políticas públicas e propostas de governo. A Folha, assim, escolheu carregar nas tintas da interpretação do debate, talvez porque achasse que combinaria melhor com o marrom da manchete.

O caderno eleições do jornal paulista, que concentra as matérias sobre o assunto, é na verdade um grande panfleto sobre o “escândalo da Veja”. Manchete de capa do caderno, quase repetindo a da capa do jornal: “Doleiro acusa Lula e Dilma; PT fala em terrorismo, e Aécio, em caixa dois”. Se não bastasse a mensagem da manchete, seu subtítulo afirma: “Alberto Youssef diz em depoimento que ex-presidente e sua sucessora tinham conhecimento dos desvios da Petrobrás”. Ou seja, o leitor que estive folheando o jornal vai se deparar com quatro títulos dizendo a mesma coisa antes de ler qualquer matéria, duas vezes na manchete de capa e duas vezes na manchete do caderno.

Essa técnica de massacre jornalístico continua dentro do caderno, com uma matéria tomando mais de metade da página 3, com o título: “Lula sabia de esquema desde 2005, diz doleiro”. Sim, parece inacreditável, mas a mesma informação é repetida aqui em letras garrafais pela quinta vez. Ao lado da matéria vem um infográfico com o suposto esquema e uma imagem da capa da revista Veja. No topo da página duas notas, uma dizendo que Lula indicou Paulo Roberto para a Petrobras e outra dizendo que Lula indicou Marcio Fontes de Almeida para o Ministério das Cidades.

A página quatro contém uma foto enorme de Dilma gesticulando abaixo do título “‘Não há nenhuma prova’, diz Dilma”. A matéria que segue narra a resposta do PT e de Dilma às acusações da Veja. Ladeando a fotografia de Dilma, do lado direito, há uma matéria de igual tamanho na qual a Folha se presta a ouvir o “outro lado”, ou seja, a própria revista Veja, defendendo, obviamente, a lisura total de seu comportamento, sem em nome da defesa da verdade e da livre expressão. Abaixo da foto há uma notícia com foto de Aécio acusando o PT de caixa dois na campanha e de tentar silenciar a mídia.

Somente uma matéria toma toda a página 5 e ela centra na questão dos ataques nas campanhas. Um dos subtítulos diz que enquanto Aécio manteve a proporção do primeiro turno, Dilma dobrou o “espaço de acusações”. A página seguinte é dominada pelo título “Corrupção e troca de acusações pautam último debate”. O restante do caderno é ocupado com matérias descritivas, sem o viés patente descrito até aqui.

Impressiona a quantidade de páginas e títulos que a Folha dedica nessa edição a uma notícia que tem quase nenhum conteúdo, a suposta acusação não adiciona quase nada ao que já tinha sido narrado exaustivamente em matérias das semanas passadas, e advém de fonte muito suspeita: o doleiro condenado, cujo depoimento é sigiloso. Ao invés de assumir uma postura prudente e cuidadosa frente a uma informação dúbia mas gravíssima, com potencial efeito eleitoral, a editoria do jornal prefere alardear em tom panfletário as acusações. Age como a revista Veja.

“Bala de prata”

A nota cômica dessa cobertura que a Folha faz do “Escândalo da Veja”, é uma pequena matéria incrustrada na página 3 do Caderno Eleições na qual a Folha se digna a noticiar um não fato: “Jornal Nacional não menciona reportagem”. Como se cobrando do seu congênere televisivo a adesão à campanha iniciada por Veja. O texto só poderia repetir o título, pois é difícil qualificar o que já não existiu.

A cobertura que a grande mídia fez da campanha de 2014 é um retrato de sua posição hoje na sociedade brasileira. Ao invés de cumprir a função de sustentáculo da formação da opinião pública democrática, nossa mídia expressa interesses partidários mesquinhos por meio da distorção das matérias e da escolha discriminatória do que é noticiado. A fabricação de escândalos tem marcado a cobertura eleitoral desde 2006, mas essa tentativa de produzir uma “bala de prata”, jargão de gosto horripilante, inclusive com a antecipação da publicação de revista e a manipulação editorial de notícias, como vemos agora na Folha, para produzir grande efeito, dá um tom deprimente a algo que já era bem ruim.

Enquanto escrevia essa matéria meu iPad acendeu anunciando a chegada a edição da Folha. A mensagem escolhida pelo jornal para anunciar a edição de sábado não podia ser outra: “Lula sabia de esquema na Petrobras desde 2005, diz doleiro”, seguida da singela frase “leia mais na Folha de hoje”. Sonho com o dia em que esse tipo de prática não mais ocorra em meu país.

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João Feres Júnior é coordenador do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP), que produz o Manchetômetro