Friday, 20 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Algum pedido de desculpas, um elogio?

Na véspera da votação do segundo turno das eleições de 2014, publiquei no jornal virtual GGN, blog do jornalista Luis Nassif, artigo intulado “Sistema fraudável sem risco para o fraudador“. No dia seguinte à divulgação do resultado da eleição, na seção de comentários do artigo, alguém postou um pedido: que o blog apresentasse desculpas, ou elogio. Replico abaixo o arrazoado do pedido e de um sucedâneo, em suficiência para contextualizar minha resposta como autor daquele artigo. Resposta que merece publicação independente, pela abrangência do debate que enquadra.

1. Este blog [do Luis Nassif] passou os últimos dias detonando a Justiça Eleitoral e o sistema de votação. Dado o resultado apertado, bastaria inverter 6 votos em cada urna para que o resultado fosse diferente. Mas Dilma ganhou, só demonstrando o quão irracional foram estas discussões. Não falo nem em autocrítica, seria pedir demais. Pelo menos o Aécio já reconheceu a derrota, mas se quisesse poderia usar os argumentos deste blog para melar a eleição… Foi uma grande irresponsabilidade usar intrigas do mercado acadêmico/empresarial de segurança da informação (que é altamente disputado), para por em risco a legitimidade da eleição.

2. Como a irresponsabilidade é total, também total é a desfaçatez. A maior parte dos histéricos que há 24 horas berravam que um golpe estava sendo dado vai calar a boca e torcer para que ninguém lembre o papelão que fizeram. Uma minoria vai manter a questão, agora ‘em tese’ (não houve mas poderia ter havido).”

Começo lembrando duas coisas. Uma: denunciar que o sistema é fraudável sem risco para o fraudador, não é a mesma coisa que denunciar que houve ou que haverá fraude no seu uso. Basta ler o artigo para ver que ele expõe as razões para fazer a primeira, e a faz, sem resvalar um milímetro que seja para a segunda. Duas: o portal do Nassif abriu espaço para essas denúncias apenas na véspera do segundo turno.

Como começaram as denúncias

A denúncia da descoberta de um artefato indistinguível de porta de fundo para inserção de programas trapaceiros na urna (o inserator), e da prova de como essa porta poderia ter sido usada na eleição anterior (2012), foi apresentada em debate na Universidade Federal da Bahia (UFBA) 11 dias após a descoberta e 20 dias antes do primeiro turno, em 15 de setembro, por uma dos membros do CMInd, depois de 10 dias de espera em vão por respostas satisfatórias do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a quem foram solicitadas providências nos termos confidenciais que o regulamento do próprio TSE exige para acesso ao código dos programas do sistema de votação (via a petição citada na apresentação do debate).

No dia seguinte ao vídeo do debate ter sido publicado no YouTube (em 19 de setembro) um parecer semi-secreto da STI (Secretaria de Tecnologia da Informação do Tribunal), sem pé nem cabeça, supostamente “respondendo” à tal petição, foi internamente encaminhado ao secretário da Presidência do Tribunal, que, como juiz “auxiliar”, mandou arquivar o pedido de providências.

Duas semanas depois, em 6 de outubro, os resultados do primeiro turno mostravam que as pesquisas de boca de urna erraram feio, em direção que beneficiou o candidato ligado às empresas que controlam o processo de desenvolvimento do subsistema de segurança e de instalação (do sistema de votação), onde se abriga o artefato, e a empresa terceirizada para executar a preparação das urnas destinadas à votação deste ano em nove estados. Esse erro indicava manipulação indevida de votos dentro da urna, hipótese consistente com o uso de uma tal porta de fundo para instalar um programa trapaceiro durante a carga das urnas.

Nos dez dias seguintes, que antecediam a preparação das mesmas urnas para o segundo turno, as denúncias sobre essa conduta no TSE e essas coincidências no primeiro turno com suas possíveis explicações, continuaram, por parte de membros do CMInd, onde havia espaço para serem ouvidas. Análises foram oferecidas, e apresentadas onde aceitas, para comandos de campanha de candidaturas que se acharam prejudicadas no primeiro turno, ou que poderiam se ver prejudicadas no segundo turno.

Também continuamos tentando fazer esses alertas chegarem, direta ou indiretamente, à autoridade maior da Justiça Eleitoral, tendo em vista a forma com que a comunicação oficial sobre a descoberta de vulnerabilidades, durante a etapa de fiscalização permitida, tinha sido abafada: mandada arquivar por alguém atuando como secretário, com apoio de quem deveria responder jurídica e tecnicamente pela ocorrência dessas vulnerabilidades no sistema. Essas tentativas diretas, que envolveram inclusive o presidente do partido que contou com membros do CMInd para exercer seu precário direito de fiscalizar o sistema, não tiveram resposta. E não sabemos se as tentativas indiretas tiveram ou não sucesso.

Depois da eleição

Agora que saiu o resultado final da eleição, vemos que os sinais prévios de contaminação de urnas com programa trapaceiro, que são as discrepâncias gritantes com as pesquisas de véspera ou de boca de urna, desapareceram no segundo turno. As pesquisas do Ibope e Datafolha na véspera acertaram em cheio, no centro da margem de erro no segundo turno. Obviamente que o candidato beneficiado por essas discrepâncias no primeiro turno, não pôde assim contar com elas no segundo turno. Contudo, se ao final esse candidato perdeu a eleição, isso nada acrescenta nem diminui às denúncias sobre vulnerabilidades no sistema e irregularidades no processo, nem aos fatos que as sustentam, os quais vinham sendo levantados e apresentados por membros do CMInd desde 4 de setembro, incialmente a quem de direito e depois a quem estivesse disposto a ouvir.

Doutro lado, quanto à credibilidade dessas denúncias, a ausência no segundo turno de sinais de exploração das vulnerabilidades descobertas contribui, logicamente, de forma positiva, como explico adiante, e não de forma negativa, como psicologicamente tentam insinuar os comentários acima.

Se em algum momento essas denúncias influíram ou não numa eventual decisão de não se usar porta de fundo no sistema para inserir na urna programa trapaceiro capaz de interferir na votação do segundo turno, ou de “pegar leve” nesse segundo turno (por exemplo, no limite da margem de erro de pesquisas), não temos como saber. Mas sabemos que o prazo limite para uma tal decisão era o da carga das urnas para o segundo turno, ocorrido por volta de 16 de outubro, portanto antes da publicação do artigo no portal do Nassif que ensejou aqueles comentários, embora enquanto as denúncias e alertas por parte de membros do CMInd ainda estavam sendo dirigidas ao presidente do Tribunal e quando já estavam circulando em público.

Na hipótese de que uma tal decisão tenha sido tomada, também não podemos saber se ela teria levado em conta as denúncias encaminhadas e publicadas por membros do CMind, considerando ou não quais repercussões elas poderiam ganhar se a possível trapaça no segundo turno garantisse determinado resultado do pleito presidencial. Considerando, por exemplo, de outro lado, que esse prazo limite foi posterior à visita de Fernando Henrique Cardoso ao maior banco do mundo, como relata Pepe Escobar, para tratar de assuntos relativos ao loteamento do Estado brasileiro no governo que viria com esse resultado.

Onde cabem desculpas

Então, para o leitor que não conheceu as denúncias de membros do CMInd anteriores àquele artigo, pedi lá, em réplica na seção de comentários – e peço também aqui, neste artigo – desculpas por não termos conseguido alertá-lo antes por outros meios. E considerando as duas hipóteses acima, que são plausíveis em vista das denúncias terem sido encaminhadas e publicadas antes de 16 de outubro, cabe-me também pedir desculpas aos que queriam ver seu candidato ganhar mesmo que fosse com trapaças até o final.

E, finalmente, aos que acreditam em democracia ao pé da letra, peço desculpas se uma tal decisão foi de fato tomada, por conta de uma possível influência do CMInd. Pois a decisão serve, como mostra o condão dos comentários citados acima, ao propósito de preservar essa galinha de ovos de ouro. Esse sistema de votação cujo dono não permite nenhuma forma de fiscalização externa eficaz, enquanto ao mesmo tempo é o encarregado constitucional de julgar os resultados, e as reclamações sobre as eleições que ele mesmo faz.

Como o sistema não é verificável externamente, não é possível demonstrar que ele computa os votos corretamente, nem demonstrar que computou votos erroneamente. A situação atual requer simplesmente que acreditemos nos resultados da eleição (ou não). Torna-se questão de crença, onde hoje domina a que é pregrada pela seita do Santo Byte. Os sacerdotes dessa seita, que idolatra tecnologia, servem um chá feito de uma mistura de propaganda oficial com dinheiro público, que é ingerido pelos olhos e ouvidos através de telas e autofalantes. No ritual, eles invocam empresas terceirizadas para criar sistemas sem licitação e para prestar serviços de segurança, e os fiéis começam então a ter visões. Visões de seres angelicais largando as harpas no céu e descendo para programar urnas eletrônicas e preparar o sistema de votação. Anjos que quando a visão passa se transformam em “profissionais”.

Onde cabem elogios

Enquanto o sistema for inverificável, essa profissão pode tanto ser a dos tais “anjos” da guarda, onde a vida da nossa democracia depende dela, quanto a de croupiers para um cassino oculto de mandatos eletivos, onde o sistema funciona como galinha que põe ovos de ouro a cada dois anos. A todos, peço então desculpas por não ter como levantar indícios de que esse trabalho voluntário de membros do CMInd na eleição de 2014 teria ou não influído numa eventual decisão nesse sentido, de os tais profissionais se comportarem como anjos no segundo turno. Quanto a elogios, só aos anjos de verdade, que obedecem a Deus e não se metem a profissionais em eleição terrena. No que me toca, quero deixar claro que não posso aceitá-los sem provas de que nosso trabalho no CMInd teria influenciado numa tal decisão. Seria muita e vã pretensão.

Quanto ao candidato derrotado não querer usar essas denúncias para melar a eleição, o motivo me parece óbvio: com que credibilidade ele poderia usá-las para isso, tendo em vista quais as empresas envolvidas, e qual a direção dos sinais no primeiro turno? De qualquer forma, se a campanha desse acha mesmo que teria chance de “melar”, ainda lhe restaria a fiscalização externa com apoio da iniciativa VocêFiscal, concebida e desenvolvida por outro membro do CMInd, que pegaria fraudes na totalização, onde o partido da candidata que venceu teria em tese mais influência. Por que não?

O golpismo oligárquico nativo não se restringe a eleições. E a plateia de FHC em Nova York vai querer levar. Aos que não aceitam essas desculpas nem esse possível motivo para elogios, aos que preferem entender a derrota do seu candidato como “prova” de que nossas denúncias são delirantes, irresponsáveis, ou levantam suspeitas contra o candidato errado, peço que me provem quais os fatos documentados nessas denúncias que são falsos, ou quais análises técnicas são inconsistentes. Pois, se não o fizerem, a acusação desses comentaristas e semelhantes, de que se trata de “intrigas do mercado acadêmico”, constitui-se em crime de difamação.

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Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor do Departamento de Ciência da Com­putação da Universidade de Brasília, Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da Cali­fornia em Berkeley. membro do Conselho do Ins­tituto Brasileiro de Política e Direito de In­formática, ex-membro do Conselho da Fundação Softwa­re Li­vre América Latina e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR)