…mas beleza é fundamental, cantava Vinicius de Moraes. E os viajantes nunca se cansaram de cantar a beleza do Rio de Janeiro em traços, versos, prosa. “O Rio de Janeiro é uma natureza que se tornou cidade e uma cidade que se dá a impressão de natureza”, encantou-se Stefan Zweig que avistou, ainda do transatlântico, as curvas, os morros, a floresta, as ilhas, a baía, a exuberância do lugar. O resto viria depois, e o que o famoso escritor austríaco viu bastou para reconhecer no Brasil um país do futuro. Não foi difícil incluir o Rio entre os 1001 lugares a conhecer antes de morrer, cotar o Corcovado entre as maravilhas do mundo. E o carioca deitado em berço esplêndido deixou tudo nas mãos de Deus.
Deus é brasileiro, o país bonito por natureza, e desse jeito há décadas a imprensa anuncia a revitalização do centro e da zona portuária do Rio. E nada acontece. Só devastação, estagnação, depredação. Não foram apenas as indústrias que s
e deslocaram do antigo centro, da urbe mercantil. Foi o declínio dos portos a partir de 1960, com a introdução da navegação de cabotagem e de longas rotas marítimas, agora baseadas em transportes de contêineres, o que exigiu grandes pátios junto às docas, substituindo os velhos cais e armazéns. Além disso, os aeroportos tomaram o lugar dos antigos terminais portuários de passageiros, ninguém mais faz viagens de dois meses de navio para chegar a Europa ou vice-versa. E mais favelas, mais drogas e traficantes, mais violência. Logo o Rio que sempre se gabou de não ser uma cidade, mas um estado de espírito contaminando dos saudáveis matinais aos náufragos da noite.
Que feio, perigoso e invisível ficou o centro. Só o carioca continuava a chamar de maravilhosa a sua cidade. Foi no século 21, há três anos, que um plano para o Porto Maravilha resgatou sítios arqueológicos como o Cais do Valongo e o Cais da Imperatriz, e planeja a visibilidade dos lindíssimos casarios, das ladeiras e becos do Morro da Providência, da velha e portuguesa Gamboa, do Santo Cristo, da Praça Tiradentes e a revitalização do berço do samba, a Praça Onze. Vai recuperar o século 19 estampado na arquitetura do centro da cidade, ali onde tudo acontecia, inclusive a cultura que rolava no Teatro Municipal e na Biblioteca Nacional – e onde a cidade imperial iniciada no Jardim Botânico se estendia até o Paço Imperial: foi na segunda janela da rua Primeiro de Março que D. Pedro I disse o famoso “Fico”, em 1821. Um império que ruiu num último baile de D. Pedro II na Ilha Fiscal, agora aberta à visitação. E o centro projeta um novo padrão imobiliário.
Qualidade de vida
Daí a importância do livro Cidades em Transformação(Edições de Janeiro), assinado pelos arquitetos e urbanistas Ephim Sluger e Miriam Danowski, lançado na segunda-feira (3/11) na Livraria Cultura do Conjunto Nacional em São Paulo.
A chave do livro-álbum, com preço de R$ 90, é a pesquisa que os autores fizeram de cinco áreas centrais em Buenos Aires, Cidade do Cabo, Londres, Nova York e Havana. Estudaram a fundo e abriram capítulos com ideias, erros e acertos de intervenções urbanísticas nessas zonas portuárias.
O que é uma sorte para o projeto do Rio, que já abriga um museu do MAR e um Museu do Amanhã, junto à Praça Mauá. O resgate da identidade de uma cidade traz orgulho, estímulo, turismo, bem estar que não combina com violência, fabrica harmonia e até, quem sabe, felicidade. Ephim Sluger cita o Nobel de Economia de 1987, Robert M. Solow, sobre a influência positiva do patrimônio cultural na qualidade de vida de uma cidade:
“A longo prazo, lugares com forte e distinta identidade têm chance de prosperar mais do que aqueles que não possuem. Todas as cidades devem conhecer seus atributos de identidade mais fortes e desenvolvê-los. Ou correrão o risco de serem tudo para todos e nada de especial para ninguém. A qualidade de vida não é um luxo da classe média. É um imperativo econômico”.
Paisagem cultural
O projeto material e imaterial do Porto Maravilha foi o mote para sete artigos assinados por especialistas. O primeiro, “Cidade, Patrimônio e Legado”, do arquiteto e urbanista Jorge Wilheim, que faleceu recentemente, lembra a antropóloga Margareth Mead: “Cultura é tudo o que o povo já não pode esquecer”. Há mais nove artigos sobre as outras cinco cidades analisadas, de autoria de arquitetos, urbanistas, paisagistas, sociólogos, cientistas sociais, administradores públicos. Dois sobre erros e sucessos na implantação do Puerto Madero, em Buenos Aires, aqui ao lado; uma história bem sucedida na zona portuária da Cidade do Cabo, na África do Sul; o plano para Nova York e a transformação dos bairros do West Side Manhattan; o sucesso de Londres em 2012 usando a sustentabilidade ambiental como estratégia; a conservação patrimonial e capacitação de mão de obra na degradada Havana Vieja, em Cuba, e a eficácia da ecologia e da paisagem cultural no dia a dia das pessoas.
Um luxo de 304 páginas que vão virar outra vez assunto de jornal, com uma diferença: agora, sim, o Porto Maravilha é uma realidade.
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Norma Couri é jornalista