Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A reconstituição do sequestro e morte dos estudantes de Iguala

Na noite de 26 de setembro, Ernesto Guerrero, de 23 anos, viu como um rifle Colt AR-15 apontava em sua direção.

– Se manda ou te mato.

Naquele momento não sabia, mas o policial o tinha livrado de uma morte certa. Não foi por sorte nem piedade, mas por pura e simples saturação. Como Ernesto se lembraria semanas depois, os policiais municipais tinham dezenas de seus colegas da Escola Rural Normal de Ayotzinapa deitados no asfalto e os estavam levando em vans à delegacia. Estavam tão ocupados, que haviam pedido ajuda aos agentes da localidade vizinha de Cocula e quando Ernesto, cheio de coragem, se aproximou para perguntar sobre o destino de seus amigos, já não tinham mais tempo nem espaço para mais um. Lhe apontaram a arma e alertaram para que fosse embora. “Vi meus colegas se afastarem pela avenida”, recorda. Essa foi a última vez que soube deles.

Naquele 26 de setembro, Ernesto havia chegado a Iguala com quase outros cem alunos de magistério em um dos ônibus procedentes de Ayotzinapa. Radicais e revoltados, os estudantes iam arrecadar, como outras vezes, fundos para suas atividades. Isso significava pedir dinheiro pelas ruas mais centrais, entrar em algumas lojas e inclusive bloquear uma avenida.

Seu desembarque não havia passado em branco. Os falcões do narcotráfico, segundo a reconstrução da Procuradoria do México, haviam seguido seus passos e alertado a delegacia da Polícia Municipal. Os normalistas não eram bem-vindos. Em junho de 2013, depois do assassinato e tortura do líder camponês Arturo Hernández Cardona, os estudantes haviam responsabilizado o prefeito de Iguala, José Luis Abarca Velázquez, e atacado a prefeitura.

Os jovens respondiam aterrorizados que eram estudantes e que não tinham nada a ver com o tráfico

Os pistoleiros e policiais, que em Iguala viviam em perfeita simbiose, acreditavam que iam repetir o ataque, mas desta vez não contra o prefeito, mas contra uma figura ainda mais poderosa: sua esposa, María de los Ángeles Pineda Villa.

Ela, como indicam as investigações policiais, comandava as finanças do cartel Guerreros Unidos na cidade. O vínculo com o tráfico de drogas vinha de longe. Era filha de uma antiga funcionária de Arturo Beltrán Leyva, o Chefe dos Chefes, e seus próprios irmãos haviam criado, a mando do líder, o embrião da organização criminosa com o objetivo de enfrentar os Los Zetas e a Família Michoacana.

Quando os irmãos foram executados e jogados em uma vala na estrada de Cuernavaca, ela assumiu as rédeas em Iguala, protagonizando junto com seu marido uma esplendorosa ascensão social que queria completar com sua última ambição: ser eleita prefeita em 2015. Para isso, em 26 de setembro havia preparado um grande evento na praça da cidade. Era o início de sua carreira eleitoral.

A chegada na cidade dos estudantes de magistério, encapuzados, rebeldes, com vontade de protestar, provocou o receio de que fossem interromper o discurso. O prefeito exigiu que seus capangas os detivessem a todo custo e, segundo algumas versões, que fossem entregues aos Guerreros Unidos. A ordem foi acatada cegamente. As mandíbulas do terror se abriram. Possivelmente nunca se saiba como a barbárie chegou a tal extremo, mas o que as investigações policiais conseguiram descobrir é que os estudantes de magistério, que com certeza não sabiam qual era a natureza do poder municipal em Iguala, foram tratados como pistoleiros, foram perseguidos com a fúria com que se matam os integrantes dos cartéis rivais.

Os estudantes de magistério foram tratados como pistoleiros, foram perseguidos com a fúria com que se matam os integrantes dos cartéis rivais

Em sucessivas etapas, a polícia atacou os alunos a ferro e fogo. De nada valeram suas desesperadas tentativas de fugir em ônibus apropriados à força. Dois morreram baleados, outro foi esfolado vivo, três pessoas alheias aos fatos perderam a vida com a troca de tiros ao serem confundidas com os estudantes de magistério. Na caça, dezenas de estudantes foram detidos e conduzidos à sede da polícia de Iguala. Ninguém deu ordem para parar. O relógio foi em frente.

O chefe dos pistoleiros, Gildardo López Astudillo, avisou o líder supremo dos Guerreros Unidos, Sidronio Casarrubias Salgado. Em suas mensagens, informou que os responsáveis da desordem em Iguala pertenciam aos Los Rojos, a organização criminosa contra a qual travavam uma guerra selvagem. Sidronio deu ordem para “defender o território”.

Em uma operação de extermínio bem planejada, fruto possivelmente de experiências anteriores, os estudantes foram levados da central de polícia de Iguala por agentes de Cocula que, mudando as placas, entregaram os jovens aos criminosos do cartel em Loma de Coyote, a 10 minutos de Iguala. Tudo estava preparado para não deixar rastros.

Em uma noite quase sem lua, conduzidos como gado em um caminhão e uma van, os estudantes foram levados até o lixão em Cocula. Foi uma viagem ao inferno. Muitos estudantes, possivelmente uma quinzena, espancados e gravemente feridos, morreram de asfixia durante o percurso. Ao chegar ao local, os sobreviventes foram descendo um a um. Com as mãos na cabeça, foram obrigados a caminhar um trecho, deitar no solo e responder perguntas. Queriam saber por que haviam ido a Iguala e se pertenciam ao cartel rival.

Os jovens, segundo as confissões dos detidos, respondiam aterrorizados que eram estudantes e que não tinham nada a ver com o tráfico. De nada adiantou. Depois do interrogatório, recebiam um tiro na cabeça. O núcleo do comando, embora tenha contado com a ajuda de mais pistoleiros, era formado por Patricio Reyes Landa, El Pato; Jonathan Osorio Gómez, El Jona, e Agustín García Reyes, El Chereje. Com brutalidade metódica, mataram todos os estudantes de magistério e, os que já estavam mortos, eram arrastados pelas pernas e braços para fora dos veículos.

Com um ritual bárbaro, prepararam uma imensa pilha no lixão. Sobre uma cama de pedras redonda, empilharam primeiro uma camada de pneus e depois outra de lenha. Então por cima colocaram os cadáveres. Foram encharcados com gasolina e diesel.

A fogueira iluminou a noite mais escura do México. As chamas foram alimentadas durante horas. Os pistoleiros, em sua impunidade, inclusive foram embora para que o fogo se consumisse sozinho. Depois das 17h no horário local, após cobri-los com terra, recolheram os restos mortais. Foram desmembrados e colocados em oito grandes sacos de lixo pretos. Ao entardecer, os assassinos abandonaram o local. Em sua viagem de volta, jogaram os sacos na corrente do rio San Juan. O México ainda demoraria alguns dias para despertar do horror.

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Os 43 estudantes desaparecidos em Iguala foram assassinados

[J. M. A. # reproduzido do El País, 7/11/2014]

 

O México se deu nesta sexta-feira [7/11] um longo abraço com a morte. A confissão, tão temida como prevista, de que os 43 alunos de magistério desaparecidos em 26 de setembro tinham sido assassinados fez saltar em mil pedaços as últimas e frágeis esperanças e empurrou o país para um abismo de dor de magnitudes históricas.

Em uma entrevista à imprensa dada pelo procurador-geral, Jesús Murrllo Karam, informou-se que naquela noite os estudantes detidos pela Polícia Municipal foram entregues a criminosos do Guerreros Unidos, o cartel que controlava Iguala. Eles os conduziram, amontoados em um caminhão e uma caminhonete, até um lixão de Cocula, uma localidade vizinha. Amontoados, feridos, espancados, muitos dos estudantes, talvez até uma quinzena, tenham morrido asfixiados durante o trajeto.

 

>> Coletiva de imprensa do procurador Jesús Murillo Karam

 

Assim que chegaram ao local, os criminosos, sempre segundo as confissões, foram retirando os estudantes e os interrogando. Queriam saber por que tinham ido a Iguala, por que tinham enfrentado o prefeito e sua mulher. Depois, com frieza avassaladora, matavam-nos. Com os corpos, armaram uma imensa fogueira que alimentaram com madeiras, detritos e pneus. A fogueira, o fogo da barbárie, ardeu durante horas, da madrugada até as 3 da tarde, sem que ninguém visse ou dissesse nada. Depois, por ordem de seus superiores, os criminosos recolheram os restos carbonizados, os quebraram e jogaram em sacos de lixo no rio Cocula. A corrente os levou até destino desconhecido.

Dois desses sacos foram encontrados pela polícia federal. Seus restos estão sendo analisados. Devido a seu estado, segundo a procuradoria, não foi possível efetuar a prova de DNA e, portanto, o último elo da investigação ainda não foi fechado. Para que isso aconteça, o Governo mexicano anunciou que pedirá ajuda aos melhores centros internacionais.

De qualquer modo, o relato feito pelo procurador-geral deixa pouco espaço para dúvidas. Sua reconstrução foi acompanhada por imagens e gravações de declarações dos três criminosos que participaram da matança. Com vozes juvenis, como se falassem de transporte de gado, os assassinos confessos descreviam ante as câmeras como eliminaram esses jovens. Sua indiferença produzia calafrios. O assassinato em massa, metódico, horripilante dos 43 estudantes era para eles pouco menos do que uma rotina. Dificilmente o México poderá esquecer suas palavras.

Mas essa reconstrução não dá o caso por encerrado. A 200 quilômetros, ao sul, em Guerrero, os pais, aferrados à esperança das provas de DNA, rejeitaram a morte dos filhos e reduziram o relato oficial a um achado de “seis sacos com cinzas e ossos”. “Já os deram por mortos uma vez, e não estava certo”, afirmou um porta-voz dos parentes.

 

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Um cemitério chamado Iguala

[Juan Diego Quesada # reproduzido do El País, 19/10/2014]

Um homem com a camisa empapada de suor cava um buraco entre uns matagais. Outro, que observa a cena, com capacete e colete fluorescente, acredita ter visto algo: “Ei, para. Um momento”. Pega um osso, coloca-o em uma pedra e explica aos que estão aglomerados em torno do buraco: “Esta pessoa deve ter sido assassinada há dois ou três anos. Foi esquartejada com um facão. Vocês podem ver o corte limpo”. Os morros que rodeiam a cidade de Iguala, onde desapareceram 43 estudantes mexicanos há três semanas, estão semeados de cadáveres anônimos.

Estes homens de mãos ásperas, munidos de picaretas, pás e facões, são os policiais comunitários de Guerrero. Camponeses, operários, granjeiros, gente humilde que pegou em armas por causa do envolvimento de autoridades dos povoados da região com o narcotráfico. Nesta tarde quente quase sem vento, essas pessoas, vestidas com sandálias e chapéus, parecem remanescentes do exército de Pancho Villa. Agora há pouco subiram o morro em caminhonetes enquanto os moradores procuravam dar-lhes ânimo pelo caminho: “Encontrem esses jovens, vamos!”.

Os moradores se uniram à busca dos estudantes e em seu rastreamento pelas montanhas se depararam com uma verdade enterrada até agora. Esta área em que estamos, parcialmente coberta pela mata, foi durante anos um patíbulo para o qual os sicários do cartel local, os Guerreiros Unidos, arrastavam suas vítimas. “Eles as obrigavam a cavar o próprio túmulo. Imagine você aqui, no meio da escuridão, sabendo que vai ser morto. Fico arrepiado só de pensar”, afirma Miguel Ángel Jiménez, o chefe da expedição.

 “Não é preciso procurar muito fundo. Os sicários são preguiçosos. Se fossem trabalhadores, não matariam”

Jiménez vai na frente abrindo caminho com um facão. Quando encontra terra removida, pede a seu pessoal que cave com as pás e picaretas. “Não é preciso procurar muito fundo. Os sicários são preguiçosos. Se fossem trabalhadores, não matariam”, assinala. A instrução é que, se encontrarem algum resto ósseo, parem de cavar para não alterar a cena do crime. Tomás Piñeda, um instrutor de maquinaria pesada, está a ponto de isolar uma cova com uma corda depois de se deparar com um resto que acredita ser humano. No entanto, observa com atenção o achado e muda de opinião: “Acho que é um osso de frango”. “Compadre, as mãos de um frango e de uma pessoa são muito parecidas. Não descarte nada”, rebate outro voluntário. A discussão fica no ar.

Um ancião de óculos e chapéu serve de guia entre a folhagem. Sidonio tem 79 anos e uma casinha perto do morro. Dedica as manhãs ao campo e as noites a ver televisão com sua mulher. O casal não tira os olhos de uma telenovela em que uma faxineira vai conquistando, pouco a pouco, o “senhor da casa”, casado com uma mulher que torna sua vida um inferno. A trama era interrompida algumas noites pelo ruído dos carros que subiam a ladeira. “A gente imagina o que eles iam fazer, mas nesta cidade é melhor não dar uma de fofoqueiro”, acrescenta Sidonio.

Os moradores acreditam ter estado perto dos narcotraficantes dias atrás. Iguala está tomada pela polícia federal e pelo Exército e uma teoria é que os sicários podem estar escondidos no morro. Jiménez diz ser capaz de escutar o murmúrio de um rio a 120 metros. A essa distância, acredita que escutou, numa colina próxima, lamentos e gemidos, “como de alguém que está sofrendo muito”. “Bastaria que tivéssemos cinco pessoas com armas de calibre 22 e nos aventuraríamos a ver o que era, mas estávamos desarmados”, conta. As autoridades lhes confiscaram as armas antes de deixá-los participar das buscas.

Onde estamos, foi durante anos um patíbulo para o qual os sicários arrastavam suas vítimas

O paradeiro dos jovens da escola de formação de professores rurais de Ayotzinapa é um mistério. A principal hipótese é que a polícia municipal de Iguala tenha detido os 43 estudantes após um confronto em que morreram seis pessoas na noite de 26 de setembro. Na delegacia, os jovens teriam sido entregues a sicários, quem os teriam executado e enterrado. As autoridades encontraram dez covas com corpos, mas as análise de DNA descartaram a possibilidade de que fossem dos estudantes. Os moradores, por sua vez, encontraram mais nove covas, que ainda não foram analisadas.

Em junho, foram encontrados 17 corpos perto daqui. Ninguém os identificou e, semanas depois, foram parar em uma fossa comum. Esse é o provável destino dos cadáveres que as equipes de busca vão encontrando pelo caminho. Depois de escavar cinco covas nesta tarde, Jiménez telefona para um contato da polícia estadual de Guerrero para informar o que encontrou. Um comandante chega 15 minutos depois. Sua camisa aberta deixa ver um crucifixo pendurado diante do peito. É acompanhado por três homens armados com fuzis. Os policiais rondam pelos buracos sem rumo definido. O comandante encerra o assunto com uma frase enigmática: “Agora nós cuidamos disso”.

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Jan Martínez Ahrens, do El País