Repetiu-se, nas eleições de 2014, uma forma de atuação jornalística essencialmente política. Formou-se no campo da imprensa o que denomino de associação editorial com fins políticos. Os jornais O Globo, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e a revista Veja, apenas para citar alguns representantes da imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, compartilharam a mesma linha editorial. Assumiram a oposição ao governo do PT com a abordagem de que o principal problema do país encontra-se na corrupção praticada no Estado, ilustrada pelo caso Petrobras.
O diagnóstico de que a corrupção no Estado é a questão central no Brasil, produzido pelos representantes da imprensa, é um desdobramento das interpretações acadêmicas que enfatizam a persistência do patrimonialismo como uma marca fundamental da cultura brasileira. Nesse esquema interpretativo, sublinha Jessé Souza, o Estado entre nós seria dominado pelo patrimonialismo, ou seja, por uma gestão da política baseada no interesse particular por oposição ao interesse público. O mal, como construído pela interpretação até hoje dominante no Brasil, é o Estado. Como se sabe, diz o autor, só existe a virtude por excelência se existir também o mal por excelência. O mal é o Estado, boa é a sociedade, confundida com o mercado, que partilha de todas as suas virtudes. O mercado, nesse esquema, passa a ocupar o papel da virtude, dos que produzem, criam empregos, promovem o desenvolvimento do país. E o Estado incorpora a maldade, a corrupção, os privilégios e os favores.
Embora seja a sétima economia do mundo, com um dinâmico mercado capitalista em expansão, o Brasil continuaria a manter uma tradicional forma de dominação política. O Estado, nessa concepção, seria controlado por um estamento burocrático que orienta politicamente o capitalismo. Hoje, o chefe do estamento seria o PT. Durante a ditadura, foram os militares. Anteriormente, Vargas teria comandado essa camada de funcionários privilegiados, definidos por Sérgio Buarque como o “homem cordial”, expressão cunhada em 1936 quando o país deixava de ser predominantemente rural. Eis a ideologia que atualmente domina os debates políticos da nação. O Estado patrimonialista explicaria nossas mazelas, sobretudo a imensa desigualdade existente na sociedade brasileira.
Relações de dominação
A temática da corrupção, com a demonização do Estado e o mercado ocupando o lugar das virtudes, foi também a principal marca dos debates durante o segundo governo Vargas. Refiro-me, sobretudo, ao caso Última Hora, quando a Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal publicaram denúncias de que o então presidente Getúlio Vargas teria intercedido na liberação de um empréstimo do Banco do Brasil para que fosse criado o jornal Última Hora, de propriedade de Samuel Wainer. A oposição udenista condenava a atitude do governo de usar o dinheiro público em favor de partidários.
Diversos representantes da imprensa sentiram-se diretamente ameaçados com a criação do jornal Última Hora e a CPI pedida pelos deputados da UDN, e instalada em abril de 1953, possibilitou dar maior visibilidade às denúncias de corrupção no governo, tema central da oposição para demolir o getulismo e neutralizar os seus resultados políticos. Dessa ótica, a campanha contra a Última Hora pode ser entendida como a contrapartida da oposição à campanha pela Petrobrás, assunto que mais mobilizou a opinião pública a partir de 1951. Enquanto a campanha pela Petrobrás, liderada pelos grupos nacionalistas e segmentos de esquerda, possibilitou colocar em pauta temas como os entraves ao desenvolvimento econômico do país, a industrialização, o capital estrangeiro e a soberania nacional, a campanha contra o jornal Última Hora liderada pela oposição liberal fechou o discurso em torno das denúncias contra a corrupção.
Os problemas nacionais foram deslocados para o plano moral, ficando a política submetida aos conceitos de mal e de bem absolutos. O que o jornal Última Hora representava passou a encarnar o mal absoluto, enquanto o que lhe era oposição significava o bem absoluto. O esvaziamento do debate político, quando subordinado aos critérios maniqueístas e acompanhado de campanhas moralistas que fazem dos personagens os principais responsáveis pelos acontecimentos, sempre corresponde à intenção de se encobrir e manter relações de dominação na sociedade. Assim deve ser compreendida a reação deflagrada pela Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal contra a Última Hora, que tomou a forma de uma campanha pela liberdade de imprensa.
Liberdade em risco
Durante o governo Goulart, a temática da corrupção no Estado também esteve presente, mas ela ficou secundarizada ante a temática do comunismo. Isso fica bem claro na organização da Rede da Democracia, idealizada por João Calmon, deputado do Partido Social Democrático (PSD) e vice-presidente dos Diários Associados. Criada no Rio de Janeiro em 25 de outubro de 1963, a Rede da Democracia era um programa comandado pelas rádios cariocas Tupi, Globo e Jornal do Brasil. Ia ao ar quase todos os dias e repercutia pelo país através de outras centenas de emissoras afiliadas. Os pronunciamentos difundidos pelas emissoras eram posteriormente publicados nos respectivos jornais: O Globo, Jornal do Brasil e, sobretudo, O Jornal.
Um dos temas mais divulgados pela Rede da Democracia, que revela registros de intensa atividade até meados de março de 1964, foi o da reforma agrária, compreendida em diversos pronunciamentos como um pretexto para se alterar a Constituição e o direito de propriedade, considerado a base do regime representativo. A oposição ao projeto de reforma agrária do governo, sobretudo nos meses que antecederam o golpe, apareceu vinculada à ameaça comunista, ideia que esteve presente na grande maioria das matérias publicadas e nos pronunciamentos veiculados pela Rede da Democracia. A luta anticomunista foi transformada numa questão de segurança nacional, a partir do argumento de que uma guerra revolucionária se espalhava pelo país. Isso explica a prioridade dada no campo discursivo às alianças com os militares e o apelo para que as Forças Armadas interviessem no Estado.
Nesse ambiente de apelos anticomunistas, o tema da liberdade de imprensa também ganhou destaque em diversos editoriais dos jornais cariocas para persuadir o público não só de que a imprensa de natureza privada estava ameaçada pelas práticas do governo, mas de que estava sendo pavimentado o caminho para um tipo de Estado despótico, que colocaria em risco todas as outras liberdades.
Figurino getulista
A criação da Rede da Democracia pelos jornais O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil, é mais uma evidência de como atuam alguns representantes da imprensa liberal. A Rede da Democracia é uma associação editorial com fins políticos. Trata-se de uma articulação formal ou informal entre empresas jornalísticas que compartilham uma mesma linha editorial com o propósito de desestabilizar governos de caráter popular e criar as condições políticas para a sua remoção da direção do Estado. Duas formas de associação editorial com fins políticos são percebidas. A Rede da Democracia é um exemplo de associação editorial formal constituída pelos jornais O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil. São exemplos de uma associação editorial informal, o cerco ao jornal Última Hora e ao governo Vargas, montado em 1953 pela Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal, assim como as atuações de setores da imprensa voltadas para desestabilizar o governo Lula (2003-2010) e conter a candidatura Dilma nas eleições presidenciais de 2010 e 2014.
No governo de Lula, jornais como O Globo, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e a revista Veja encontraram no presidente um alvo preferencial. Os representantes da imprensa construíram a imagem do governo Lula associada à corrupção e divulgaram críticas com nítido caráter ideológico, com base na ideia de que crenças, projetos e ações do governo e do PT se alinhavam às práticas da velha esquerda autoritária. Além de estigmatizarem a figura de Lula, as argumentações sugeriam que as decisões do governo derivavam de concepções de mundo atrasadas, derrotadas historicamente.
O governo Lula teve menos comprometimento com o questionamento da propriedade privada do que o governo Goulart, mas também esteve sob intenso ataque de representantes da imprensa que se viram ameaçados em sua liberdade diante da proposta de controle social da mídia, prevista na Constituição de 1988 quando esta afirma que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Venício Lima sustenta que um sistema privado de mídia oligopolizado e controlado por reduzido número de empresas familiares é um impedimento à liberdade de expressão dos cidadãos e à formação de uma opinião pública democrática.
Vale lembrar que durante a campanha presidencial de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez críticas à imprensa no sentido de que alguns de seus representantes estavam se comportando como se fossem partido político ao se alinharem com a oposição ao governo. O presidente também teria afirmado, no comício em Campinas, ao lado da candidata do PT, Dilma Rousseff, que a “opinião pública não precisava mais de formadores de opinião e que ele, sim, formava a opinião pública”. Em editorial intitulado “Lula e a visão autoritária da imprensa”, O Globo ironizou o presidente ao sustentar que ele incorporou o “espírito do Rei Sol, um Luiz XIV tropicalizado” quando assumiu no comício “nós somos a opinião pública”. De acordo com o jornal, a visão de Lula ao depreciar a imprensa como formadora de opinião e se exaltar como representante maior da opinião pública seria a reedição de um “pai dos pobres de figurino getulista”. Assinalou ainda que o “presidente teria hipnotizado as massas, alimentadas por um assistencialismo bilionário e por isso elas só reproduzirão a opinião do seu redentor”. Na interpretação do jornal, Lula distorcia a origem do fenômeno da opinião pública:
“O papel da imprensa foi fundamental para que a opinião pública tivesse condições de se manifestar e enfrentar o poder absolutista.”
Economia de mercado
O editorial do jornal O Globo foi escrito com o propósito de alimentar a campanha pela liberdade de imprensa promovida por diversos jornais no governo Lula, que alcançou o ápice durante o período eleitoral de 2010. Os representantes da imprensa se opunham ao projeto do governo de regulação dos meios de comunicação, conforme editorial de O Globo.
“O governo Lula perdeu a credibilidade para propor uma discussão séria sobre qualquer regulação da mídia ao ser leniente com investidas contra a liberdade de imprensa. No primeiro mandato, foram as propostas da Ancinav e do Conselho Federal de Jornalismo, as quais jamais deveriam ter sido formuladas. No segundo, a risível terceira versão do ‘Programa Nacional dos Direitos Humanos’, utilizada para justificar o controle do conteúdo da imprensa – eufemismo de censura –, espírito idêntico ao da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), iniciativa do Planalto, fonte inspiradora da criação, em diversos estados, de conselhos de “controle social” de grupos independentes de comunicação.”
O Globo considerava que o governo pretendia controlar os meios de comunicação, seja através da criação de conselhos com a função de tutelar a imprensa, seja através de constrangimentos comerciais que estrangulassem financeiramente as empresas jornalísticas, vistas como independentes. Em editorial intitulado “Um projeto autoritário em marcha”, O Globo refere-se “ao direito constitucional à liberdade de imprensa e expressão”, que estaria ameaçado pelo projeto do governo, voltado para “regular as chamadas participações cruzadas, com o objetivo de reduzir o tamanho e a diversificação dos grupos de comunicação”. Por determinação de Lula, segundo o jornal, o projeto estaria sendo preparado pelo então ministro da Secretaria da Comunicação Social Franklin Martins e seria deixado pronto para a candidata Dilma encaminhar na sua administração. A proposta do governo para a “democratização da mídia”, ou “o controle social dos meios de comunicação” seriam “eufemismos para designar a destruição da independência da imprensa profissional”. Para termos uma ideia mais precisa da magnitude da campanha promovida pelos representantes da imprensa, tomamos como fonte de pesquisa apenas o jornal O Globo, entre agosto e dezembro de 2010. O tema da liberdade de imprensa, como contraponto ao projeto do governo para os meios de comunicação, foi o foco de 11 grandes matérias, o assunto principal de seis editoriais e a coluna de Merval Pereira o abordou em quatro edições.
Qual o significado desse embate que envolveu diferentes concepções de opinião pública e de liberdade de imprensa e colocaram em lados opostos o presidente Lula, um representante político e dirigente de Estado eleito para executar um programa de governo democrático, voltado para o público popular, e o jornal O Globo, um representante da imprensa liberal, reconhecido pelas posições conservadoras e comprometido com os valores dominantes da sociedade brasileira? Ele nos remete ao tema central da moderna vida política das nações liberais democráticas do ocidente. Quem representa a opinião pública? Quem está autorizado a falar em seu nome? A definição do que seja opinião pública e a disputa pela sua representação no âmbito da imprensa são questões recorrentes na história republicana brasileira.
Em diversos trabalhos, tenho apresentado evidências da atuação de alguns representantes da imprensa liberal. Eles adotam um discurso que confere pesos diferenciados aos meios de expressão da opinião pública, sobretudo em circunstâncias de crise dos valores da democracia representativa. Enfatizam a concepção publicista em detrimento da concepção institucional da opinião pública. Diante dos partidos, escolhas eleitorais e representação política valorizam a própria imprensa como representação da opinião pública porque ela seria mais comprometida com os valores dominantes da sociedade brasileira, manifestados na defesa incondicional de uma economia de mercado que tem no direito de propriedade e na liberdade do indivíduo os seus eixos fundamentais.
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Aloysio Castelo de Carvalho é professor da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ