Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Na ‘era da pós-fotografia’

Diretor do Programa de Crítica de Arte & Literatura da prestigiada Escola de Artes Visuais (SVA) de Nova York, o poeta David Levi Strauss é um dos principais especialistas na academia americana no estudo de como imagens e objetos modificam o cotidiano sociopolítico das sociedades contemporâneas. Suas cinco coleções de textos de não ficção, infelizmente jamais traduzidas para o português, acabam de receber um reforço de peso: as 25 pensatas reunidas em “Words not Spent Today Buy Smaller Images Tomorrow: Essays on the Present and Future of Photography” (Aperture, 2014).

Os “ensaios sobre o presente e o futuro” passeiam de forma decidida por questões como os discursos possíveis na fotografia em sua encarnação digital e instantânea e as representações políticas de imagens nunca antes expostas ao mesmo tempo para uma audiência tão enorme de espectadores, como no caso dos atentados às Torres Gêmeas do World Trade Center em Nova York, mas cuja veracidade – dos retoques de Photoshop na capa de revistas femininas a montagens reproduzidas como reais em redes sociais – joga por terra teorias pós-modernistas sobre a simbiose entre registro fotográfico e realidade. Em conversa cujo cenário foi sua ampla sala na SVA, localizada no coração do Village, Strauss tratou das maravilhas e mazelas do que ele chama de “era da pós-fotografia”, resultante de um caso atípico de “assassinato midiático”. Os trechos mais importantes seguem abaixo:

O senhor diz que a fotografia, tal qual criada do século XIX, foi assassinada em tempo real e com recorde de audiência nas últimas décadas do século passado. O que é a fotografia nos dias de hoje?

David Levi Strauss – Fotografia, hoje, é mais um fluxo constante do que um traço, um esboço do real. A maneira como respondemos às imagens e o modo como elas influenciam nossa vida estão mudando de forma veloz. A era da imagem digital e em telas é caracterizada por imagens em movimento constante e em influxo, em um ambiente de comunicação absolutamente impensável anos atrás. O que aconteceu foi, sim, um caso de assassinato midiático. Pense nos “snapshots”, naquelas imagens que somente “existem” de fato por alguns segundos, enviadas de um celular para outro, e depois desaparecem. Ou, por outro lado: você conhece alguém que ainda imprima fotos?

O senhor diz que esse assassinato ocorreu antes mesmo que pudéssemos entender o poder cognitivo da imagem nas sociedades pós-industriais…

D.L.S – Não acho que compreendemos ainda como as imagens técnicas funcionam, quanto elas nos afetam e quanto acreditamos nelas. O que são de fato essas imagens, de que modo as captamos, o que fazemos com elas e o que elas fazem conosco? Algo muito mais antigo é transmitido por essas imagens, que remete a ícones religiosos e manifestações pré-artísticas, mais percebidas como emanações e não representações, pensadas como se fossem o sujeito, não a imagem dele. Você acredita que o santo está lá, em pessoa, não é a imagem dele, algo extremamente subversivo para quem deseja exercer algum tipo de controle do real. Pois acredito que algo dessa distopia foi transferido para as imagens técnicas quando elas surgiram no século XIX e se intensificou na era digital. Quando olho para fotografia de arte, fotojornalismo, imagens na TV, filmes, parto desse princípio. Paradoxalmente, no entanto, há aspectos do universo da imagem que permaneceram imutáveis. Quiçá o mais central deles seja a crença nas imagens. Sejam elas no Instagram ou no Pinterest, não importa, elas estão ligadas à necessidade inconsciente de encarar essas imagens como prova de experiência vivida, como objeto de lembrança ou, igualmente, de esquecimento, ainda que as fronteiras, no mundo digital, sejam menos palpáveis.

Mas o fotojornalismo não seria o guardião dessa relação entre a imagem e o real?

D.L.S – Sim, mesmo em sua encarnação on-line, se algo nos é apresentado como “fotojornalismo”, ainda acreditamos naquelas imagens como se estivéssemos vivendo na era mecânica. No entanto, qualquer imagem que você vê numa edição de revista ou jornal é necessariamente trabalhada digitalmente, ou seja, o que você vê na tela não tem mais relação obrigatória com a realidade imediata.

Muito se fala da questão ética do fotojornalismo na era digital. Ficou famosa a declaração pública da atriz Kate Winslet contra os retoques que a “emagreceram” em uma capa de revista feminina…

D.L.S – Exato, mas para além da questão ética é importante pensar na relação da força da imagem com a crença do olhar de quem a vê. Ou seja, o poder da imagem nunca teve, e não tem hoje, certamente, a ver com objetividade e, sim, com o inconsciente, em como processamos mentalmente o que registramos através dos nervos óticos. Parece complicado e é. Qual é a fronteira entre o que é mais ou menos relevante a partir das alterações feitas na imagem técnica? Honestamente, não sei. O importante é que a discussão está finalmente atraindo os fotógrafos.

Mas a discussão vem da década passada, não? Fotos de guerra alteradas digitalmente na edição causaram a demissão, em 2003, do fotógrafo premiado Brian Walski, do “Los Angeles Times”, quando ele buscava registrar a invasão do Iraque…

D.L.S – O Walski usou duas fotografias e, sem avisar os editores, alterou-as digitalmente para criar uma única imagem, a seu ver superior, de uma cena em Basra, envolvendo civis iraquianos e soldados britânicos. As imagens foram parar na primeira página do “L.A. Times” de domingo e publicadas também no dia seguinte no “Chicago Tribune”. Ele foi demitido e os jornais pediram desculpas públicas. A carreira dele acabou, mas não a discussão. Mas, para você ter uma ideia, quando essa história explodiu, eu estava em uma reunião com fotojornalistas da agência Magnum. Todos foram incisivos: não podemos deixar que isso aconteça. No momento em que as pessoas não acreditarem mais em nosso trabalho, não concordarem que estamos retratando o real, diziam, acabou para nós. E eu rebatia: mas, meus caros, essa fronteira já foi cruzada. Não é esse o cerne da questão.

O senhor defende, até mesmo no título original de seu livro, que o importante é entender a transformação da imagem com as possibilidades do universo digital. Para o senhor, mudanças ainda mais drásticas do que as que a fotografia impôs à escrita…

D.L.S – O título foi inspirado em poema do fotógrafo americano, nascido na Itália e, curiosamente, criado no Brasil, Frederik Sommer (1905-1999), publicado em 1962, que me marcou muito. O que havia, ali, de tão verdadeiro? Ora, a ideia de pensar uma economia em que palavras eram usadas para comprar imagens e do risco de um ciclo inflacionário afetando essa relação. E hoje usamos muito mais amiúde e em maior velocidade imagens para nos comunicar, mas com cada vez menos tempo para decodificá-las. Certamente, temos menos tempo para tanto hoje do que quando elas precisavam ser impressas ou ainda estavam conectadas de alguma forma ao papel. O poder de influência das imagens em nosso comportamento, político, social e econômico, mudou muito. E fica, a cada dia, mais difícil diminuir o fluxo para observar as partes, o processo, de que forma elas nos tocam, nos modificam.

Basta imaginar uma pessoa consumindo em seu celular, ou computador, a quantidade de imagens a ela enviada apenas pelos outros indivíduos que ela decidiu seguir em sua conta de Facebook ou Instagram. Ao mesmo tempo, a produção e edição de imagens de cada indivíduo é outra enormidade…

D.L.S – Sim, e me interessa tanto a produção individual, “amadora”, ou de profissionais como Miguel do Rio Branco e Sebastião Salgado, para ficarmos em dois nomes brasileiros, quanto o registro de eventos de dimensão histórica, como Abu Ghraib, a Praça Tahir ou o Ocupem Wall Street. De todos, nenhum modificou mais nossa relação com a imagem técnica do que os eventos do 11 de Setembro de 2001. Minha aula de história da fotografia iria começar naquele dia. Todos os estudantes foram profundamente afetados pelo evento, mas também pelas imagens mais marcantes daquele momento histórico, especialmente as do segundo avião e a das duas pessoas pulando de mãos dadas rumo à morte, acossadas pelo fogo. Afirmo ter sido esse o evento mais fotografado na história do planeta. A área em volta das Torres Gêmeas foi a região mais filmada de todos os tempos. E, como se passaram 17 minutos até se chegar às primeiras conclusões de que fora de fato um ataque terrorista, houve tempo para fotografar, inclusive para registrar imagens das imagens que apareciam nos computadores e TVs. Ali, em um único dia, teorias sobre a recepção de imagens em massa se tornaram obsoletas.

O senhor trata no livro da crítica pós-moderna à “estetização do sofrimento”, prevalente na academia nos anos 80 e 90…

D.L.S – E a primeira reação às imagens do 11 de Setembro foram: “Parecia com algo que eu já havia presenciado anteriormente”. Em filmes, na imaginação popular. Já éramos íntimos daquele ataque antes mesmo de ele acontecer. Em seguida, Manhattan se transformou em um enorme altar, com parentes e amigos das vítimas andando por toda a ilha com imagens de seus queridos. Muito rapidamente se compreendeu que aquelas eram imagens de pessoas mortas, não estavam “desaparecidas”. Anos e anos de especulação sobre o futuro da imagem, de uma hora para outra, foram escancarados: ficou registrada nossa necessidade por aquelas imagens de lembrança. E a influência do 11 de Setembro na recepção psicológica de eventos como Abu Ghraib e a Primavera Árabe foram enormes.

O senhor fez palestras mundo afora acerca das imagens de Abu Ghraib. O que elas tinham de tão diferentes de outros registros de abusos em tempos de guerra?

D.L.S – Elas violaram o muro que havia entre imagens profissionais registradas por fotojornalistas e fotos que soldados estavam tirando e seriam, ainda assim, impressas na grande imprensa e mostradas pelas redes de TV. Algumas daquelas imagens se tornaram icônicas instantaneamente. Ainda hoje, aquelas são as imagens que melhor simbolizam o desmando daqueles Estados Unidos no mundo. Elas causaram um dano à posição americana no mundo sem precedente histórico.

Há, por sua vez, imagens que seguem jamais sendo mostradas de eventos históricos cruciais de nosso tempo, como o assassinato de Osama bin Laden…

D.L.S – A administração Obama ofereceu aos cidadãos diversas razões para não ter mostrado as imagens que obviamente eles têm. Não sei se acredito nelas. Mas é importante lembrar-se da enorme quantidade de imagens falsas de Bin Laden morto que imediatamente depois do anúncio de sua morte invadiram a rede. Ou seja, as pessoas, de qualquer modo, precisavam ver aquele corpo. E a Casa Branca imediatamente criou a imagem do presidente Obama com seus auxiliares mais diretos, no Situation Room, e a dos fuzileiros na casa em que Bin Laden foi abatido, como substitutos, ilustrações possíveis para o que o público precisava ver. Elas claramente buscavam ocupar um espaço exigido pelos cidadãos.

O senhor trata também do efeito das imagens da praça Tahir, distribuídas em redes sociais, no cidadão americano comum…

D.L.S – Todos estávamos vendo as imagens de Tahir diariamente. Chegou um momento em que o termo ideal para classificar o que víamos em nossos computadores e celulares era vício. Queríamos ver algo “sensacional” que estava acontecendo lá e a grande imprensa americana não conseguiu registrar de imediato. Você tinha a Al-Jazeera e as redes sociais. Aquelas imagens tiveram um efeito especialmente particular: toda uma geração de americanos que só teve contatos com imagens de manifestações no passado passaram a vê-las em tempo real, ainda que não em solo americano. Havia algo para tomar o lugar da Marcha de Washington, dos protestos contra a guerra do Vietnã e pelos direitos civis dos negros.

E o senhor afirma que elas foram fundamentais para a explosão do Ocupem Wall Street.

D.L.S – Explicitamente, o fotógrafo que clicou a primeira imagem do Ocupem Wall Street, a da bailarina no topo do touro da Bolsa de Valores de Nova York, disse explicitamente que sua intenção foi a de mostrar que os EUA precisavam, também, de sua Primavera. E ela aconteceu. Ainda é difícil para mim acreditar que ela de fato aconteceu. E que toda a discussão sobre desigualdade social neste país, inexistente, se tornou fundamental na pauta do dia, e traduzida em imagens fortíssimas criadas, pensadas, produzidas e tratadas pelos Ocupem. As imagens da polícia jogando spray de pimenta nos manifestantes, por exemplo, foram fundamentais, e não teriam como circular na internet dois anos atrás, prova cabal da revolução da era da pós-fotografia de que falei no início. Você não precisava mais esperar pela edição digital que fosse do “New York Times” para deparar com uma imagem icônica de um movimento daquelas dimensões: bastava entrar em sua rede social.

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Eduardo Graça, para o Valor Econômico, em Nova York