Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O poeta maior da ‘vanguarda primitiva’

Perto de completar 98 anos (em 19 de dezembro), o poeta mato-grossense Manoel de Barros morreu ontem, em Campo Grande (MS), por problemas decorrentes de uma cirurgia no intestino. Viveu muito, diriam alguns. Mas no seu caso é diferente. A cronologia não importa. A ausência, sim. É como um craque de futebol que não se verá jamais em campo, a inventar dribles, a criar jogadas e a fazer de um gol um poema. Faz falta a presença, mesmo que se diga que sua vasta obra permanecerá como criação de um dos mais aclamados poetas contemporâneos brasileiros.

Barros deixa uma poesia marcada pela singularidade do seu caráter ao mesmo tempo inventivo, original, experimental e atrevido, uma posição marcada pela coerência, do primeiro ao último verso que escreveu, em quase 70 anos de carreira. Ousou, por exemplo, ao não usar sua imaginação para criar versos de lamento, pois falava do amor em seu sentido mais nobre e positivo e jamais deu atenção a aspectos negativos, como inveja, ciúme, traição – subtemas tão recorrentes no gênero que o consagrou. “A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos”, escreveu em “O Livro Sobre Nada”, de 1996, sua obra mais famosa.

Era impressionante sua facilidade para manipular as palavras e compor versos sem rimas que dialogavam por intensidade com o leitor. Mais pareciam visões filosóficas da existência. Alguns poemas seus como o que dá título a “Livro Sobre Nada” mostram um autor que sabia fazer de cada verso um aforismo de grande beleza. No trecho final, ele escreve em autorreferência: “O artista é erro da natureza./ Beethoven foi um erro perfeito./ Por pudor sou impuro./ O branco me corrompe./ Não gosto de palavra acostumada./ A minha diferença é sempre menos./ Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria./ Não preciso do fim para chegar./ Do lugar onde estou já fui embora”. 

Além de escrever sobre a existência, Manoel de Barros tinha paixão por humanizar os seres vivos. Tanto os bichos mais delicados, principalmente os pássaros, quanto as árvores, os rios, as matas – com sua força para gerar vida de mil formas. Ao se voltar para eles, deu-lhe sentimentos mais nobres, pela sensibilidade de quem deitava, acordava, comia, respirava e olhava tudo à sua volta com pupilas de poeta.

Em “O Apanhador de Desperdício”, sintetizou sua reverência à natureza, da qual sempre se considerou parte indissociável: “Entendo bem o sotaque das águas/ Dou respeito às coisas desimportantes/ e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões./ Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos”.

Vida reclusa

Outra de suas marcas era transpor para a poesia o vocabulário coloquial do que se falava no campo. Recorria a uma sintaxe que reproduzia a linguagem oral que ouvia de seus pares. Para a crítica, essa opção ampliou as possibilidades expressivas e comunicativas do seu léxico. Com isso, compôs neologismos que remetiam à prosa de Guimarães Rosa, contemporâneo seu. E foi nessa estrada que brincou, ousou e criou um caminho sedutor em que a palavra ganhava variantes e níveis diversos. Com ele, a língua portuguesa ganhou “instabilidade semântica”, segundo o poeta Geraldo Carneiro, pois não respeitava com suas construções as normas da língua-padrão.

Observações assim levaram Barros a se definir como um poeta da “vanguarda primitiva”, numa referência às vanguardas e ao modernismo brasileiro da primeira metade do século XX. Mas, como ocorre com a poesia no Brasil, demorou quase meio século para ele ser reconhecido. Apesar de ter escrito muitos livros durante toda a vida e ganhado vários prêmios literários desde 1960, durante muito tempo sua obra foi ignorada pelo grande público.

Uma explicação está no seu jeito discreto, longe dos meios literários e editoriais. Começou a chamar a atenção depois de elogios de Millôr Fernandes, já na década de 80. A partir daí, ganhou reconhecimento por meio dos maiores prêmios literários do Brasil, como o Jabuti, em 1987, com “O Guardador de Águas”.

O aval maior veio quando Carlos Drummond de Andrade, em 1986, afirmou que não era ele, mas Manoel de Barros, o maior poeta brasileiro vivo. A afirmação chocou alguns, que acharam se tratar de excesso de modéstia de Drummond. Antonio Houaiss concordou, na condição de um dos mais importantes filólogos e críticos brasileiros: “A poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor”.

O poeta estava internado havia duas semanas no Proncor de Campo Grande. Passou por uma cirurgia no intestino que causou complicações e o levou para a UTI, depois de um quadro otimista de recuperação. Segundo o hospital, o poeta teve falência múltipla dos órgãos. Nos últimos anos, Barros viveu em Campo Grande e levou uma vida reclusa ao lado da mulher.

Veja também

O documentário Paixão pela palavra, sobre o escritor Manoel de Barros

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Gonçalo Junior, para o Valor Econômico