A imprensa parece cada vez mais alimentar sua bipolaridade e idiossincrasias. Quando o assunto envolve ciência de um lado e interesses econômicos de outro, o surto psicótico é geral. Sempre surgem os argumentos sobre a necessidade de fornecer panoramas completos no noticiário, da pluralidade e outros contos da carochinha que só servem para iludir quem não é do meio. O bloco do “engana público” sai porta afora, sem pudores, a cumprir os desejos de suas anomalias.
O dia 30 de outubro de 2014 ficará na história da imprensa nacional, se é que ela se apercebeu disto. Repórteres especializados, generalistas, editores agitados, blogueiros de meia cura, a mídia engajada, a de ar solene, a displicente, a pseudoengajada e toda a fauna existente escutou, por duas horas, um dos mais brilhantes cientistas brasileiros, Antonio Donato Nobre, de 56 anos, integrante do Centro de Ciência do Sistema Terrestre, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), lançar o relatório “O Futuro Climático da Amazônia” (íntegra aqui) numa linguagem para leigos – para o cidadão mediano conseguir compreender o desastre do desmatamento.
E mesmo – literalmente – desenhando, como está fazendo nas redes sociais com o projeto “Árvore, Ser Tecnológico” (ver aqui perfil no Facebook), choveram dúvidas no deserto da ignorância. Logo, Nobre se apercebeu de algo: o jornalista brasileiro não lê o material que tem em mãos, não se prepara para questionar. O repórter estrangeiro, no entanto, além de se qualificar para a entrevista, tende a fazer perguntas e produzir argumentos muito mais pertinentes e contextualizados. Desculpas tupiniquins? Aos montes, e sempre as mesmas, por mais absurdas e antiprofissionais que possam parecer: “não tive tempo”, “assunto muito complexo”, “prefiro não ter uma visão preconcebida”, entre outras barbáries.
Homens e bois
Se na bipolaridade midiática existe um componente extremamente ativo, este é a hipocrisia. Tratar o maior biocídio – no sentido lato da palavra, eliminação da vida – sem o devido preparo deixou de ser temerário para se tornar criminoso, nivelado à cumplicidade. Apenas a matança generalizada na Amazônia – sem contar com a promovida nos biomas da Mata Atlântica, Pantanal e Cerrado – é o maior extermínio em massa por meio de ação antrópica da história do planeta. Em 40 anos, são mais de 42 bilhões de árvores e 50% dos biomas que compõem a floresta sob a ação do fogo, da motosserra, da ganância, da negligência e da cumplicidade oficial. E a mídia dá de ombros, por pura ignorância, ou por comprometimentos econômicos camuflados sob “condutas editoriais”.
A seca do Sudeste, região que tende a se tornar um deserto, tem evidências científicas de estar intimamente relacionada à somatória do desmatamento da Amazônia, da Mata Atlântica, de anomalias oceânicas no Atlântico Sul e mais as queimadas – uma prática cada vez mais frequente e impune em todos os cantos do país. Soma-se a isso um Código Florestal feito sob demanda do agropecuarista e um governo federal comprometido com sua perpetuação no poder, a qualquer custo. O resultado é a destruição em larga escala, não só do patrimônio público, mas principalmente da vida.
O interessante dessa mistura fétida, e que comprova as observações do cientista Nobre, é ter sido a imprensa estrangeira a dar os primeiros sinais do grau de comprometimento econômico-político na destruição da floresta. Os primeiros veículos a ver o problema foram a BBC e o diário espanhol El País. Em 23 de setembro, a BBC manchetava: “Brasil não assina acordo mundial para reduzir desmatamento”. No dia 14 de outubro, o El País: “Grandes proprietários, a causa do desflorestamento na Amazônia”.
Uma semana depois do anúncio do relatório de Nobre, novamente a imprensa nacional noticiou o caso com a versão governista, sem qualquer contextualização. Para piorar, o Brasil das commodities, da imprensa repleta do fervor “agroufanista” e do maior rebanho para abate do mundo, destacou em suas editorias de Economia que o Pará comemorava ter alcançado a marca de 21 milhões de cabeças de gado, o terceiro entre os gigantescos rebanhos brasileiros.
Com isso, o estado do Pará abriga o maior rebanho dentro da Amazônia Legal. Mas a mídia esqueceu de informar que a população paraense é de 8 milhões de pessoas – ou seja, ali existem 2,6 bovinos para cada habitante. E que entre 1988 e 2013, o Pará foi o estado amazônico que liderou os desmatamentos e as queimadas, posto que ainda não perdeu. Isso retrata bem a distribuição e o uso da terra.
Fonte suspeita
Neste ponto, o melhor é deixar o leitor(a) com os comentários de Antonio Donato Nobre sobre a postura da imprensa brasileira quanto ao desmatamento e o maior biocídio provocada pelo homem na história do planeta. Derruba-se a floresta, matam-se animais silvestres e abatem-se milhões de cabeças de gado por ano: um ciclo vicioso pautado na morte, no extermínio e, principalmente, no lucro rápido e na posse das terras da União.
Eis o que diz Nobre sobre o comportamento passivo da imprensa, mesmo diante de um quadro alarmante em todos os sentidos.
Antonio Donato Nobre – Existe uma indústria do embaralhamento cognitivo e a mídia cai nela direto. Entre cem cientistas há menos de três com alguma dúvida sobre o aquecimento global, pessoas sem nenhuma expressão, sem qualquer trabalho, sem credencial ou publicação, e que acabam tendo mais de 50% do espaço da imprensa. E muitos deles são financiados por interesses escusos.
Mas isso tem precedentes?
A.D.N. – Esse é um processo que já aconteceu na indústria do tabaco. Por 50 anos, essa a indústria fez esse embaralhamento cognitivo e, dos anos 1990 para cá, a indústria do carvão, do petróleo e, no nosso caso, do desmatamento, faz a mesma coisa. O que é triste disso tudo é que a questão do tabaco já se resolveu – em diversos países já se percebeu que isso não afeta só a saúde, mas também a economia. Esse nível de intolerância com algo que já foi demonstrado pela ciência como sendo danoso deveria ser adotado em relação ao desmatamento, à queimada e à fuligem têm que ser parados hoje, não há mais tempo.
A mídia está na zona de conforto ou participa disso?
A.D.N. – Uma coisa é certa: não dá mais para ficar alimentando esse embaralhamento cognitivo, não há mais tempo, é preciso dizer e prestar atenção na verdade. Isso eu digo para a imprensa olhos nos olhos: chega! E foi o motivo pelo qual eu mudei a linguagem do relatório [“O Futuro Climático da Amazônia”], agora [dirigido ao] cidadão: isso vai impactar inclusive a imprensa, num curto circuito. Se a imprensa está participando deste jogo cognitivo [diversionista], para que eu vou também entrar neste jogo? Gasta-se uma energia enorme e sem resultados.
Como você notou isso?
A.D.N. – Eu tenho evidências, mostro a imagem de satélite, vários dados e estudos, vem um sujeito e diz “eu não acredito em nada disto” e a imprensa dá uma quilometragem imensa para ele. Um grande exemplo é o [programa do] Jô Soares: recebe o cara que nunca publicou um só trabalho para comentar o assunto e quem é sério, quem trabalha e pesquisa [o tema] a vida inteira, não consegue espaço. E depois temos que ficar explicando por três meses para a imprensa as mesmas coisas, na tentativa de desdizer o que o fulano disse no programa. Você vai à internet, pesquisa o cara e vê que ele tem ligações com pessoas e empresas que têm interesse no desmatamento, é ligado às indústrias poluentes que estão presentes no Brasil. Assim fica muito difícil.
[Depois desta entrevista, concedida na sexta-feira (7/11), Nobre foi obrigado a tirar alguns dias de descanso tal o seu desgaste, principalmente provocado pela imprensa, que o assediava permanentemente com questionamentos cujas respostas estavam todas no relatório. Em tempo: Nobre já passou por quatro cirurgias no coração, sofreu um AVC e já contraiu malária, entre outras doenças tropicais. Em um par de horas, naquele dia, mais de dez veículos de comunicação o contataram via telefone e ele recebeu duas equipes de reportagem.]
Veja também
>> Íntegra da entrevista de Antonio Donato Nobre a Júlio Ottoboni
>> Excerto da coletiva do professor Antonio Donato Nobre, em 30/10/2014, no lançamento do relatório “O Futuro Climático da Amazônia” (íntegra do evento aqui)
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Júlio Ottoboni é jornalista, pós-graduado em jornalismo científico