Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Coleiras da liberdade

Soluções que proporcionem segurança, facilidade, agilidade, comodidade: recorrentes promessas das tecnologias, das mídias, das novas propostas de amor. Aplicativos que já sugerem o que você pretende digitar e corrigem intuitivamente suas digitações emocionadamente erradas; aplicativos que sugerem legendas para fotos (a Google lançou um recentemente) que compreendem sua expressão de busca antes de você finalizá-la (ou mesmo que escreva errado) e que seleciona os anúncios que serão exibidos para seu perfil. Unificação de dados na nuvem para serem acessados a qualquer tempo, em qualquer dispositivo e local. As funcionalidades são diversas. As soluções, caracterizadas pela transferência de responsabilidade e controle, vendem uma liberdade que nos aprisiona. Livres, não sabemos o que fazer e nos embrenhamos em um automatismo social que seria cruel, se não fosse tão poético.

Poético, pois nos estabelece como seres modernos, autônomos, livres para criar e vivenciar a vida sem as amarras operacionais de um indivíduo social. Entretanto, evoca uma intensa vulnerabilidade. Quando observados com afinco, é possível perceber que o comportamento dos seres humanos apenas foi envelopado por novas mídias e modismos. A conversa, alinhamento e fofoca das praças públicas estão agora nos aplicativos de smartphones e em redes sociais digitais. Os crimes e perigos de becos, lugares ermos e escuros agora espreitam o cidadão digital. Os avisos de porta de geladeira e de agenda agora brilham nas telas de aparelhos que passaram a ser extensão do corpo. A possibilidade de criar e reverberar conteúdos nos fez emitir discursos muitas vezes sem a devida substância e conceito. A felicidade buscada, a mensagem e significado sonhado sofrem com o solavanco da corda esticada de uma coleira da liberdade, cravejada de mídias e modismos.

O que deveria nos dar liberdade para refletir, rever e aprimorar a narrativa que estabelecemos em vida, aparentemente nos confunde, atrofia a linguagem pelo excesso e castra o potencial que possuímos.

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Rudson Vieira é jornalista