Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Hamlet, os três imperialismos e a indústria cultural

1.

Se se considera o livro Cultura e imperialismo (1995), de Edward Said, o que se evidencia nele é uma cuidadosa investigação sobre a relação entre cultura e imperialismo europeu, de tal modo a ficar patente o papel dos artefatos culturais como suporte da expansão imperialista do Ocidente europeu, principalmente tendo em vista a sua versão inglesa. Um exemplo pode ser esgrimido com um livro singular como Hamlet, de Shakespeare.

2.

Em Hamlet, dois personagens contraponteados se inscrevem como figuras catárticas de uma moral da história voltada e devotada a instigar a expansão imperialista inglesa muito antes ainda do termo, imperialismo existir. Os personagens são o próprio Hamlet, príncipe da Dinamarca, e Fortimbras, príncipe da Noruega. Enquanto este sai para o mundo guerreando e conquistando territórios, aquele, por sua vez, concentra-se no interior do castelo e se vê tomado por uma rede de intrigas que tem o fantasma do pai (leia-se o fantasma do passado) como interlocutor fatal. Não é circunstancial que no final da peça a corte inteira da Dinamarca (incluindo Hamlet, rainha, rei, irmão de Ofélia) mata e se mata, enquanto Fortimbras chega para tomar para si o reinado, inclusive com a bênção de Hamlet, que o admira.

3.

O inconsciente político da peça é sob esse ponto de vista simples: um verdadeiro príncipe não deve ser cortesão. Deve sair para o mundo e conquistar territórios, reinos, povos, riquezas. O interior do castelo é fatal para qualquer realeza. Não obstante Hamlet de Shakespeare seja uma peça extraordinária, é também suporte catártico e panfletário da e para a expansão imperialista inglesa (ou europeia), razão suficiente para assinalar a importância de um livro como Cultura e imperialismo, de Said, cujo argumento principal é simples: as produções culturais do Ocidente não são neutras e não obstante a qualidade intrínseca de suas fabulações serviram também de suporte à propaganda imperialista. Podem ser lidas também, portanto, como armas de guerra.

4.

Tendo em vista o exemplo exposto, o imperialismo europeu herdou para o seguinte, o americano, o seguinte axioma: expansão territorial de um lado e intriga palacial de outro. O que equivale a dizer, em termos de gênero literário: de um lado é preciso ser épico, conquistar territórios; de outro é preciso ser lírico, isto é, transformar a cultura em suporte estético e subjetivo de uma plataforma publicitária cujo objetivo central é: esboçar um rosto humano, para não dizer mitológico, do invasor épico, de tal maneira que este seja apresentado aos povos colonizados como magnânimo, criativo, inteligente, civilizado: um sublime ideal de guerra para os capturados pela mortalha épica do colonizador/invasor genocida.

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Hamlet e Fortimbras são a cara e a coroa do imperialismo!

6.

Se, por sua vez, o imperialismo europeu herdou para o seguinte o axioma ao mesmo tempo tático e estratégico do jogo entre a dimensão lírica e a épica como forma de estabelecer uma relação indiscernível entre cultura e imperialismo, o que o distingue do imperialismo americano? Essa questão se inscreve no marco da dinâmica, que não deixa de ser tecnológica, de uso possível da relação entre o lado cultural/lírico e o épico/bélico expansionista. No imperialismo europeu, o que vem primeiro é o rosto do colonizador em nome do qual o lírico e o épico se fazem ao mesmo tempo como Hamlet e Fortimbras: é leve, intimista, indeciso, feminino, humano demasiadamente humano, como Hamlet; e também implacável, forte, objetivo, macho, como Fortimbras. Trata-se, pois, da lírica e da épica do rosto do colonizador, como pacote de bens, para dialogar com Fanon de Os condenados da Terra, ao mesmo tempo cultural, epistemológico, comportamental, tecnológico, econômico, bélico.

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E como o complexo militar-industrial se dá também em termos de captura tecnológica de forças ao mesmo tempo do caos, da Terra e do cosmos (ora, ora, ora), o primeiro imperialismo inscreve o pacote de bens líricos e épicos no e do rosto do colonizador europeu em expansão através do ritornelo ao mesmo clássico e romântico, entendendo por este como expressão musical das forças rítmicas da Terra e por aquele como disritmias das forças órficas do caos. No ritornelo romântico, como um maestro, o colonizador europeu deve ser apto a capturar as forças da Terra (traduzida como povos, riquezas minerais, vegetais, animais, climáticas, marítimas) de tal maneira a orquestrá-las por meio do jogo lírico e épico, tornando assim onipresente a sua rostidade. Por meio do ritornelo clássico, por sua vez, o imperialismo europeu impõe a sua própria ideia de civilização como se fosse a casa ideal para todo o mundo, acusando de antemão a periferia pilhada de ser o lugar do caos e da barbárie.

8.

O imperialismo europeu agitou as forças da terra, capturando-as, matando-as e domesticando-as a seu favor, expandindo-se a partir de tecnologias do ritornelo romântico ao mesmo tempo em que produziu o caos no mundo inteiro e, como se fosse um Deus magnânimo, ofereceu a casa de seu modelo de civilização como ideal de ego a ser perseguido e desejado pelas periferias barbarizadas. Estas, por sua vez, produziram elites subordinadamente comprometidas a imitar as instituições da civilização europeia a fim de, de forma delirante, afugentar o caos em que vivem, sem no geral assumirem que tal caos tem relação direta com a expansão imperialista das tecnologias de domínio das força da Terra, como as que possibilitaram o advento da Segunda Revolução Industrial, assim como as de transporte, de radiodifusão e também de domínio das mídias grafocêntricas, razão suficiente para designar esse primeiro imperialismo como produtor de uma mecanosfera (a casa e o caos planetários) apta e ávida a comunicar e a publicizar seu rosto a um tempo lírico e épico tendo em vista o domínio da produção, da circulação e do consumo de mídias implicadas com a grafosfera que a si mesmo se escreveu em narrativas, em poemas, em teatros, em informações, resultando daí por exemplo um magnífico texto como Hamlet, de Shakespeare, entre os indefinidos exemplos apresentados por exemplo por Edward Said em Cultura e imperialismo, livro fundamentalmente comprometido em analisar o uso dos artefatos culturais pelo imperialismo europeu.

9.

Ainda relativamente a esse primeiro imperialismo, seu sistema de rosto, como já foi dito, sendo autorreferencial (o rosto da “casa civilizada” eurocêntrica como contraponto “às forças do caos” da e na periferia do sistema) é por isso mesmo um modelo semiótico que pode ser chamado, em diálogo com Deleuze e Guattari, de regime significante. Este nada mais é do que um modelo de produção simbólica vinculado a um significante de referência, que tem a seguinte configuração: é o rosto branco do europeu; rosto ao mesmo tempo lírico, terno, feminino, delicado, dubitativo, íntimo, como o de Hamlet; e forte, macho, incisivo, bélico, épico, como o de Fortimbras. Por meio desse duplo rosto, o imperialismo europeu impôs-se sobre as forças da Terra, apresentando a si mesmo, via domínio de mídias grafocêntricas, como o rosto do próprio Deus, não sendo circunstancial obviamente a imagem dominante da iconografia cristã que circula em todo o mundo, com seus santos, suas nossas senhoras, seus cristos predominantemente brancos, donde se torna possível inferir que os outros rostos são expressões do caos, logo do inferno; logo do Diabo.

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Assim foram inventados, no primeiro imperialismo, os rostos das alteridades na civilização burguesa como contraponto ao divinizado rosto europeu, emergindo daí a alteridade negra, asiática, indígena, mestiça, feminina, homoerótica, infantil, analfabética (a milenar cultura oral). A tecnologia de dominação do imperialismo europeu se constituiu, portanto, definindo de antemão o rosto do caos a ser dizimado por seu lado épico, impondo-se a ele por meio da “generosa” oferta de seu próprio rosto, como se fosse o divino rosto lírico da transcendência. Vale a pena mencionar aqui outra obra de Shakespeare, A Tempestade, na qual os personagens Calibã (descrito como escravo selvagem e disforme) e Ariel (apresentado como o espírito do ar) representam respectivamente a alteridade bárbara e o rosto do europeu como entidade do ar, logo transcendental, num contexto em que o título da peça alegoriza a tempestade identificando-a com as forças caóticas da Terra. Estas devem ser submetidas por meio do ritornelo clássico, Ariel, o modelo sílfide transcendental do rosto do civilizado, impondo-se exemplarmente sobre os rostos terráqueos e imanentes do bárbaro Calibã/alteridade.

11.

O segundo imperialismo da civilização ocidental é o americano. Tal como o primeiro, o europeu, faz uso do axioma de rosto ao mesmo tempo lírico e épico como meio de dominação da periferia ou das alteridades. Para tanto, diferentemente do primeiro imperialismo, usa tecnologias de genocídio diversas, posto que não emergem como expressão do regime significante da rostidade europeia.

12.

Antes de descrever e analisar a especificidade do regime de rostos do imperialismo americano, um parêntese é necessário. Por ter se constituído por um imperialismo significante que teve como centro o rosto branco do europeu, os ritornelos clássico e o romântico da dominação europeia foram identificados, com o passar do tempo, pelas alteridades do mundo, razão pela qual passaram a encontrar cada vez mais sérias dificuldades de continuar se impondo por meio de tecnologias de comunicação grafocêntricas. E isso por um motivo básico: as alteridades desde o começo do processo expansionista europeu foram acumulando experiências revolucionárias no campo do uso da escrita, expressando de forma cada vez mais incisiva contrapoderes não eurocêntricos, emancipadores.

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O melhor do jornalismo no século 19 e na primeira metade do 20 é um exemplo cabal desse contrapoder das alteridades, principalmente se considerarmos por exemplo as mídias escritas por socialistas e anarquistas. Marx e Proudhon, independente de suas diferenças e polêmicas, constituem dois instigantes exemplos do século 19 de autores comprometidos com uma expressão crítica contrassignificante.

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O uso da escrita como suporte tecnológico do imperialismo europeu também produziu dois regimes de arte: o poético e o estético. Em diálogo com Jacques Rancière, principalmente tendo em vista o livro A partilha do sensível (2005), entende-se como regime poético da arte aquele que de muitas e diferentes formas tem relação com o modelo de rosto do imperialismo europeu, razão pela qual se fundamente partilhando as forças da terra de forma hierárquica, sempre tendo em vista o modelo endeusado do rosto europeu. O regime estético, por sua vez, é o que faz emergir o rosto (logo a semiótica, os desafios, os desejos) das alteridades. A partir daí, portanto, temos dois modelos, por exemplo, de literatura: uma literatura de regime poético, basicamente eurocêntrica; e uma literatura de regime estético, comprometida com a reescrita, sob o ponto de vista das alteridades, da partilha do sensível imposta pelo imperialismo europeu no mundo inteiro, partilha por exemplo que define de forma racista o lugar do civilizado e do bárbaro; do produtivo e do improdutivo, do inteligente e do ignorante; do saber e do não saber.

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Fundamentalmente, a universidade brasileira, mesmo estando na periferia do sistema acadêmico, ainda basicamente professa o regime poético da arte. É pois eurocêntrica.

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Após esse parêntese, voltemos à semiótica do imperialismo americano. Esta emerge a partir da crise do imperialismo europeu; crise que estourou e piorou quanto mais a coletividade das alteridades do mundo identificava, de diversos modos, a farsa do ritornelo clássico europeu, o que ocorreu não apenas nas colônias como também na metrópole, se se considera as alteridades operárias europeias. As duas grandes guerras do século passado constituem sob esse ponto de vista dois exemplos trágicos da crise do imperialismo europeu, que foi superado definitivamente após a Segunda Guerra Mundial pelo americano.

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Com relação ao segundo imperialismo, o americano, a primeira observação é: emergiu dominando o ritornelo moderno. E o que é o ritornelo moderno? Ora, ora, ora! Se o primeiro ora, conjunção adversativa, é o que se inscreve no ritornelo clássico em oposição aos ritmos do caos e se o segundo é o ritornelo romântico que se constituiu partilhando as forças da terra entre rostos civilizados e bárbaros, o terceiro por sua vez captura tanto as forças do caos como as forças da Terra tendo em vista tecnologias que atuam na Terra fora dela mesma, como satélites, sondas espaciais, aviões não tripulados – e um sem número de outras.

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O imperialismo americano é o que detém o domínio do ritornelo moderno, de base tecnocientífica cosmológica. Seu ponto de vista, portanto, no que diz respeito às forças do caos e as forças da terra não é terráqueo, mas cosmológico. Essa é a sua principal diferença do imperialismo europeu, que teve que lidar com as forças da Terra, as das alteridades, tendo em vista tecnologias épicas de alguma forma, não obstante a superioridade tecnológica, inscritas no corpo a corpo da luta.

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A perspectiva do segundo imperialismo é outra: das alturas, fora da Terra. Ao dominar-nos a partir de uma posição senhorial exterior ao planeta, o ritornelo moderno americano impõe outro modelo de caos e outro modelo de realização tecnológica das e para forças da Terra. A primeira consequência desse olhar diverso é: o macro e o micro são consubstanciais. Ao ver a Terra de fora, o imperialismo americano adquiriu uma plasticidade incrível para multiplicar os rostos das alteridades e portanto para jogar com eles, inclusive e principalmente compreendendo que os rostos de alteridade podem ser infinitamente reeditados, reescritos, parodiados, tendo em vista uma inteligência geopolítica que analisa, conjuga e contrapõe as forças da Terra em seu conjunto: norte, sul, leste, oeste – as direções geográficas também se tornam, nesse contexto, rostos a serem indefinidamente reeditados.

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É por isso que as tecnologias cosmológicas do ritornelo moderno são igualmente a base tecnocientífica dos aparatos micrológicos como as comunicações televisas, internéticas, telefônicas, sem contar o cenário atual da biotecnologia e da nanotecnologia: a primeira que estilhaça o rosto da vida, desdobrando-a e reescrevendo-a, como possibilidade, para além daquilo que as forças da Terra definiram como humano, não humano, maquinal, orgânico; e a segunda, igualmente como indefinida possibilidade de desdobramentos materiais, se se considera que a própria ideia de unidade material dos corpos pode ser igualmente reeditada e reinventada.

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O imperialismo americano é por isso mesmo cosmológico e háptico: cosmológico porque nos concebe e reedita tendo em vista uma posição senhorial exterior ao planeta, aumentando a lógica positivista de uma terceira pessoa da ciência ao absurdo de uma “neutralidade” não terráquea; háptico, por sua vez, porque é digital, sensorial.

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Essa situação faz emergir dois modelos simultâneos de panóptico: o cosmológico e o háptico. O primeiro torna a Terra inteira panoptizada, razão pela qual os habitantes do planeta somos vistos, vigiados sem ver quem nos vê e vigia; o segundo, o háptico, circunscreve um sistema de vigilância sensorial diretamente vinculado ao corpo individual, não sendo circunstancial que estejamos agora sendo vigiados e esquadrinhados em cada movimento nosso ao usar internet, celulares, equipamentos eletrônicos diversos. O panóptico cosmológico nos localiza no espaço, como consciência; e o háptico nos localiza no corpo, inconscientemente. No fundo e no raso, o que está em jogo é o lado épico e lírico do primeiro imperialismo, com a diferença de que agora a dimensão épica, a cosmológica, vê-nos de fora; e a lírica, ausculta-nos por dentro, reescrevendo nossos próprios desejos, inventando nossos inconscientes.

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A consequência disso tudo está na relação direta com um modelo semiótico que não é mais grafocêntrico e tampouco é o do regime significante. O imperialismo americano realiza-se tendo em vista o regime de signo pós-significante. E como funciona tal regime de signo? É simples. Se o regime significante se centra num rosto de referência e se no caso do imperialismo europeu esse rosto de referência é o próprio rosto do europeu, no pós-significante o rosto de referência é abstraído no dólar como papel moeda de referência planetária de tal modo a se constituir por multiplicidades indefinidas de rostos.

24.

Se dialogamos novamente com Deleuze e Guattari, basta pensar a relação entre desterritorialização e reterritorialização. O dólar se constitui, por meio do imperialismo americano, como a abstração planetária do ritornelo moderno, de base cosmológica e por esse prisma divino (o retorno do Velho Testamento) senhorial, desterritorializa sem cessar todos os rostos do planeta e ao mesmo tempo se reterritorializa no inconsciente das alteridades, que se afirmam ou tendem a fazê-lo como reterritorializações inconscientes do dólar, num sistema de câmbio que não é mais apenas entre moedas, mas também entre subjetividades, sobretudo das alteridades.

25.

A multiplicidade de rostos do imperialismo americano tem como propósito principal confundir as alteridades. Se a crise do imperialismo europeu emergiu em função da identificação cada vez mais coletiva do rosto do colonizador, a solução do imperialismo americano foi teatral: multiplicar as máscaras dos donos dos meios de produção e dos gestores do Estado imperialista a fim de seduzir e capturar as alteridades do planeta inteiro.

26.

Reside exatamente aí o império do dólar como abstrato rosto de referência do imperialismo americano, posto que este nos indicia a buscarmos o caminho da oligarquia como meio eficaz de reterritorializá-lo ou encarná-lo, incorporando prestígio e poder. É por isso que imperialismo americano, comparado com o europeu, constitui uma maneira de trocar seis por meia dúzia, porque as alteridades do mundo, tal como no imperialismo europeu, continuam barbarizadas e genocidadas, embora em escala até maior que antes.

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As alteridades, portanto, são instigadas, pelo imperialismo americano, a encarnarem-se no dólar através de um processo sem fim de ascendência burguesa marcada e demarcada pelo estilo americano de vida. O exemplo mais evidente dessa situação reside na África do Sul onde o regime de apartheid não terminou, até porque este é planetário e o é contra todas as alteridades, entendidas como excluídos coletivos, inclusive ou antes de tudo as não humanas. O que ocorre na África do Sul é que lá agora a oligarquia também é negra. Simplesmente isso, num contexto em que o negro como excluído coletivo continua sob um forte regime de apartheid, tão violento como na era em que os brancos estavam no poder do Estado sul-africano.

28.

De qualquer forma, assim como o imperialismo europeu precisou de um suporte de comunicação planetário eficiente para se expressar mundialmente, o da escrita; o americano também precisou, com a diferença de que, para o segundo modelo de imperialismo da civilização ocidental, a escrita deixou de ser o seu principal meio de expressão, pois dominou desde o começo a vídeosfera, tal como a definiu o midiólogo francês Regis Debray: suporte midiático que tem como referência os ícones em movimento, o que é o mesmo que dizer: tem como referência os rostos em movimento, razão pela qual pode editá-los ao infinito, narrando, noticiando e produzindo perspectivas líricas e épicas em conformidade com seus oligárquicos interesses.

28.

Sem pois o absoluto domínio da indústria cultural, de base icônica, o imperialismo americano não conseguiria se impor planetariamente.

30.

Tendo em vista o regime pós-significante, de multiplicidade de rostos (de alteridades, antes de tudo), o imperialismo americano imita a vida em movimento, virtualizando-a a seu bel-prazer. Com isso produz mundialmente uma segunda natureza humana em que cada vez mais somos o que e como a indústria cultural nos edita e reedita vinte e quatro horas por dia, em todos os âmbitos da vida: no econômico, editando um modelo único de sistema produtivo; no cultural, virtualizando-nos épica e liricamente como e por meio do estilo americano de vida; no político, partilhando o sensível planetário entre bons e maus conforme a dificuldade que encontra para dominar povos, roubar seus recursos. Isto é: conforme a dificuldade que encontra para submeter as forças da Terra, dividindo-as, tal como fazia o imperialismo europeu, em Ariel e Calibã, embora não sem impor uma tempestade de genocídio em todos os lugares da Terra.

31.

Se o primeiro imperialismo, expressou-se pela grafosfera do ritornelo clássico europeu, o segundo, o americano, expressa-se pela videosfera planetária, virtualizando-nos a todos, seja sob o ponto de vista do panóptico cosmológico, seja sob o ponto de vista do háptico, num contexto em que este se realiza através de uma suposta autonomia das e para alteridades se expressarem, de forma digital, como ocorre por exemplo nas redes sociais, nas quais em tese todos dizem o que querem e assim o fazendo se expressam e são capturados num só tempo no âmbito mesmo de seus inconscientes; e aquele, o cosmológico, por meio sobretudo das edições virtuais produzidas pelos oligopólios e/ou monopólios midiáticos, sem que possamos fazer nada a respeito.

32.

Nesse contexto, a tendência é fechar o círculo do controle, posto que no âmbito das tecnologias midiáticas hápticas nossa autonomia expressiva tende a se limitar aos referenciais estabelecidos pelas tecnologias midiáticas cosmológicas, como a televisão, o cinema, a publicidade, por exemplo, situação a partir da qual se torna mais fácil identificar e capturar os desviantes, porque, ao usarem as tecnologias hápticas fora do âmbito expressivo das edições oligopólicas das tecnologias cosmológicas, os novos Calibãs são observados sem cessar por um policial sistema de vigilância ao mesmo tempo local e global.

33.

Para produzir linhas de fuga em relação ao imperialismo americano é preciso fazer o que foi feito com o imperialismo europeu. Se no âmbito deste sua rostidade dominante foi sendo gradativamente percebida, denunciada e reescrita criativamente (o regime estético da arte) através da democratização da grafosfera, o segundo precisa, por sua vez, democratizar a videosfera reconfigurando, assim, um novo regime estético apto a reeditar as edições virtuais do imperialismo americano nos âmbitos da economia, da cultura e da política, sempre considerando a desafiadora luta para produção de uma hegemonia midiática planetária do e para os povos, o que inscreverá o cenário igualmente planetário de alteridades não oligarquizadas e não oligarquizáveis.

34.

E nesse contexto que emerge o terceiro imperialismo. Este começa a se esboçar, por exemplo, por meio do Brics (principalmente tendo vista China e Rússia) porque, sobretudo na periferia do sistema, o rosto multiforme do imperialismo americano começa a ser identificado como farsante produtor artificioso de edições virtuosas da e na videosfera da e na indústria cultural, dominada por proprietários anglo-saxônicos e sionistas.

35.

Hugo Chávez Frias foi talvez o primeiro homem público da atualidade que soube como ninguém rebelar-se contra a videosfera mundial na contramão de estilo americano de vida, inclusive colaborando significativamente não apenas para a retomada igualmente planetária do termo imperialismo mas muito especialmente para a problematização de sua versão pós-significante americana.

36.

De qualquer forma, porque está sendo identificado por outras forças imperialistas, o modelo americano está em plena crise. O terceiro modelo, por sua vez, por si mesmo não constitui uma esperança para a humanidade pela simples razão de que, tal como o europeu e o americano, é oligárquico e se inscreve tendo em vista a exploração do excluído coletivo das decisões fundamentais da vida em comum: o sistema produtivo, o estilo de vida coletivo (e individual), a política entendida como o lugar do dissenso dos povos que a si mesmos se expressam ou devem se expressar tendo em vista a apropriação coletiva das tecnologias do retornelo moderno.

37.

Por outro lado, diferentemente dos dois imperialismos precedentes, o terceiro, o imperialismo da periferia, constitui-se ou se afirma tendo em vista a possibilidade da produção mundial de um capitalismo como contraponto ao caos infernal do primeiro e do segundo sobre, contra e por meio das alteridades, barbarizando-as.

38.

A promessa desse terceiro modelo imperialista portanto é: um mundo não barbarizado. Evidentemente isso não é possível em contextos oligárquicos, embora, só por se expressar, faz-se como uma relevante brecha para a emergência de um mundo sem oligarquias, por meio de uma humanidade do e pelo regime estético das artes – uma humanidade em arte, autocriando-se sem cessar.

39.

Tal não será possível jamais se esse terceiro imperialismo não disputar claramente as tecnologias do ritornelo moderno e, portanto, se não produzir um sistema de mídias hápticas e cosmológicas independente do sistema de espionagem e de controle do imperialismo americano, o que significa simplesmente o seguinte: inventar uma nova épica e uma nova lírica mundiais fora do regime significante europeu e do regime pós-significante americano.

40.

Entender como a vida na Terra foi confabulada segundo a dinâmica desse duplo imperialismo, o europeu e o americano, é vital para que o imperialismo periférico possa produzir sua própria dinâmica e sobrepujar os dois primeiros. É preciso para isso não apenas desmistificar o rosto do regime significante do primeiro, com seu sistema de bens eurocêntrico, mas também desconstruir a farsa pós-significante, principalmente porque ela foi produzida para capturar, confundir, seduzir e submeter a periferia, oligarquizando-a dentro da dinâmica cosmológica do imperialismo americano.

41.

Para os povos do mundo, por sua vez, é fundamental entender a dinâmica dos dois primeiros imperialismos, o europeu e o americano, para que seja possível desmontar e se aproveitar melhor das contradições que emergem na atualidade a partir da emergência do imperialismo periférico.

42.

Aproveitar esse momento histórico de indefinição significa não se render a nenhum significante de referência assim como a nenhum regime pós-significante, fundamentalmente narcísico porque marcado e demarcado por subjetividades confessadas e confessantes que vivem como se fosse possível um mundo de multiplicidade de rostos principescos, num planeta ecologicamente esgotado, sem contar e já contando com o fato de que sua lógica imanente pressupõe uma espécie paradoxal de democracia oligárquica de rostos, o que é absurdo nos seus termos.

43.

Superar, pois, os três imperialismos principalmente tendo em vista a brecha geopolítica que surge com a emergência do terceiro é a senha para uma humanidade transformada numa lírica épica, ou vice-versa, sem Fortimbras, sem Hamlet, no ser ou não ser do que advirá a partir do cuidado comum, num mundo sem imperialismos.

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Luis Eustáquio Soares é professor, Serra, ES