Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalismo transformador

Interessante, a tese defendida pela jornalista Ana Dubeux no artigo “Informar não basta” (Correio Braziliense, 16/11/2014, ver aqui):

“O papel do jornalismo, em especial da mídia impressa, tem despertado discussões acaloradas. Até promissoras, acredito, pois, ao contrário do que se pensa ou se diz por aí, não se trata apenas de sobrevivência. Devemos falar sobre relevância. O jornalismo precisa fazer sentido à vida das pessoas, do seu microcosmo, da sua cidade, de seu país, de seu planeta. Sem isso, ele morre mesmo sem morrer, escorre por entre as letrinhas impressas os digitais. Por essa razão, independentemente do meio, o ofício transcende ao informar. Mais do que nunca, cabe ao jornalismo transformar.

Transformar a realidade dos moradores de um lugar é também despertar a consciência e chamar a atenção para o que não veem.”

Nesse sentido, Dubeux escapa do modelo pragmático que destaca o jornalista estritamente como um “profissional” obediente a procedimentos predeterminados (nos termos em que, não por acaso, as empresas pretendem fazer), uma vez que esta linha de atuação reduz a importância e a possibilidade transformadora estimulada pelo campo jornalístico. Diferentemente do “jornalismo amestrado”, conforme feliz expressão de Licínio Rios Neto, a jornalista defende um paradigma comunicacional arrojado capaz de articular um ideal de profissão que teria a vantagem de destacar a “militância” como virtude profissional, contrariando, assim, o discurso “técnico” das modernas empresas jornalísticas defensoras de uma “objetividade” que esconde o trabalho de produção do sentido da notícia. A partir dessa perspectiva, Dubeux considera o jornalista um indivíduo comprometido com a mudança social, o que lhe confere legitimidade para atuar como agente social em prol de mudanças significativas e consistentes para um mundo melhor.

Em outras palavras, o jornalismo só exerce sua função de mediador entre público e realidade porque se sustenta na pressuposição ética de que o jornalista produz relatos que guardam relação direta com a realidade. Entretanto, como bem observa Dubeux, “o ofício transcende ao informar. Mais do que nunca, cabe ao jornalismo transformar”. Por isso, é falso pensar que o fato bruto entregue ao receptor é mais legível fora de seu contexto. Além disso, todo fato apresentado resulta de uma escolha, confessada ou não. Seria melhor explicar essa escolha, justificá-la e comentá-la, do que continuar jogando os fatos em confusão com outros. Ou seja, uma prova concreta de transparência jornalística se refere à divulgação pública da linha ideológica que norteia editorialmente as gazetas. Como informante, o jornalista deve se comportar como um humilde servidor dos acontecimentos. Porém, como agente da transformação social fala mais alto o papel do periodista como servidor da população. Consequentemente, a sociedade tem o direito de saber tanto as notícias transmitidas pelo jornalista como as opiniões defendidas por ele nos assuntos que tocam diretamente o interesse público.

Filtro crítico do real

O posicionamento de Ana Dubeux dialoga com “o ethos romântico” que, segundo Cláudia Lago, em Fênix do jornalismo (2004), compreende, em termos ideais, “o jornalista como personagem ímpar (herói) e individualizado, ligado por vínculos de paixão e estoicismo à busca da verdade, ao exercício da profissão como missão, relacionada a demais valores. Em sua versão mais idealizada, resiste, inclusive, à organização da responsabilidade social concreta que pressupõe um engajamento com o ofício e com os interesses da imprensa em moldes industriais”. Penso que “o ethos romântico” aponta para a necessidade de um jornalismo que tenha como parâmetro não a lógica do espetáculo, mas a defesa dos interesses da sociedade. Reivindica-se, desse modo, a prerrogativa iluminista sob a qual o jornalismo nasceu: a busca da verdade.

Logo vem à mente a promessa evangélica: “Conhecereis a verdade e a verdade nos libertará” (Jó 8, 32). Grande parte dos males deste mundo, aqueles que são em princípio evitáveis – porque dependem dos comportamentos humanos, e não da estrutura da realidade –, procede das más relações com a verdade, que podem chegar à aversão por ela, a levá-la a ser considerada o inimigo que deve ser evitado ou destruído. Partindo da mais escrupulosa exigência da verdade e do reconhecimento da realidade em toda a sua complexidade e com sua coerência, o jornalismo ético pode ajudar a sociedade a exercitar o pensamento e formular com correção os problemas. A verdade é a própria condição da liberdade, porque o erro – para não dizer a falsidade – conduz inevitavelmente à servidão.

Para Dubeux, o desenvolvimento do jornalismo não se efetua por acumulação dos conhecimentos, mas por transformação dos princípios sociais revelados pelo saber informativo e opinativo veiculado pelos jornais. A imprensa só justifica sua existência se contribui de fato para o esclarecimento consciente e consistente da opinião pública. É preciso, contudo, reconhecer que o jornalista tem como instrumento de trabalho a enigmática linguagem. Desse modo, no mesmo instante o periodista diz e oculta alguma coisa, oferecendo resíduos à reflexão e ao pensamento. Jornalismo não é espelhamento do real, mas filtro crítico deste. Como um devir, que se realiza no momento da recepção comunicativa, o conhecimento, no jornalismo, não se esgota. Portanto, qualquer processo de compreensão do material jornalístico será bem-sucedido se formar sujeitos aprendizes, desejosos de outras buscas.

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Marcos Fabrício Lopes da Silvaé professor da Faculdade JK, no Distrito Federal, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários