O livro Os inovadores– escrito por Walter Isaacson, lançado recentemente no Brasil e já nas primeiras listas de melhores do ano mundo afora – conta a história das pessoas, começando por Ada Lovelace, que inventaram o mundo digital, no qual estamos cada vez mais submersos. Nossa situação atual parece vingança póstuma de manifesto surrealista: os chips se libertaram dos computadores e se multiplicam juntos e misturados a qualquer coisa. O analógico não tem alternativa: ou se converte em bits ou desaparece. As coisas se comunicam entre si, como no país das maravilhas que, segundo relato de Alice, pode ser também aterrorizante.
Boa leitura para complementar Os inovadores é “What the dormouse said”, de John Markoff, salvo engano nunca lançado em português. O subtítulo explica a maluquice do título: “como a contracultura dos anos 60 moldou a indústria do computador pessoal”. Explicando melhor ainda, para quem não tem coleção de vinis hippies: “What the dormouse said” é citação de verso de“White rabbit”, hino psicodélico lançado pela banda Jefferson Airplane no álbum “Surrealistic pillow” (repare bem no surrealismo aqui outra vez). Obviamente John Markoff fez metacitação de Lewis Carroll, que – nada por acaso – era também matemático. Resumindo o que vem a seguir: escrevo esta coluna para provar, matematicamente (para isso não preciso consultar a biblioteca do Impa), que Alice está bem viva (ou deveria estar) no fundamento digital de nossa vida pós-PC, com a consciência plugada na internet de todas as coisas.
Na análise desse desbunde do real (vivemos era em que o real mesmo, no seu núcleo mais duro, se desbunda, constatação que não insinua juízo de valor) talvez falte um terceiro livro, ainda não escrito. Seria uma história de diversas revistas que, com graus bem variados de sucesso comercial, difundiram para o público leigo reflexões sobre o impacto das transformações tecnológicas na cultura, na política e em todo o resto. O mais interessante: seu efeito não foi só formar a mente dos consumidores dos novos produtos, mas também direcionar as ideias dos inovadores, e mesmo de seus CEOs, para seguir Alice em suas aventuras.
É possível identificar momentos marcantes dessa história paralela lendo as introduções de cada capítulo de Borg like me, livro de Gareth Branwyn, que tem outro subtítulo que procura explicar (ou não) seu conteúdo: “& outros contos de arte, eros e sistemas embedados“ (procurei no Aurélio agora e não encontrei o verbo “embedar”, mas acho que já se tornou atitude/termo corriqueiro por aqui). Você pode não ter ouvido o nome do autor, mas certamente usa ou é influenciado por algumas das ideias divulgadas por seu trabalho na edição de revistas como “Mondo 2000”, “Wired”, “Make”ou no site/blog “bOING bOING”, ainda um dos mais influentes no circuito tecnocultural.
Momento mágico
O livro, como coisa ou produto, já é a concretização de vários princípios centrais na ideologia desse circuito, que tem hoje sua vanguarda no movimento maker (no Brasil há a tentativa, que aprovo, de batizá-lo de movimento fazedor– tenho carinho especial pela conjugação do verbo fazer). Seu financiamento foi colaborativo (vale conferir a documentação do processo de “crowdfunding”, muito bem feito, mas muito trabalhoso, cheio de lições para quem pensar em se aventurar por opção de produção semelhante). Uma nova editora independente, a Sparks of Fire, foi criada para o lançamento, mostrando como já vivemos em outra realidade (desbundada?) editorial.
Estou insistindo no repetição do uso da palavra desbunde, contra todos os sinais – espionagem e ódio pesados, por exemplo – que indicam o predomínio do lado negro da força em nossa vida cibernética contemporânea. Em entrevista para o podcast “Expanding mind”, Gareth Branwyn usou expressão que me deu calafrios por fazer tanto sentido: “matrix faça-você-mesmo”. É uma provocação: usamos a estratégia punk, ou cyberpunk, do do-it-yourself para construir – coletivamente, descentralizadamente – nossa própria prisão-rede-social? Tantas oportunidades tecnolibertárias (muitas delas visíveis pela primeira vez nas publicações editadas por Gareth Branwyn) perdidas? Em que momento perdemos Alice de vista?
Por isso a importância de reler os artigos “de época” reunidos em Borg like me, não para cultivar a nostalgia por aquela zona autônoma temporária criada por Gareth Branwyn e seus mentores/parceiros malucos-beleza em algum momento mágico da virada das décadas 1980/1990. A leitura apenas recarrega nossas baterias para enfrentar os problemas de hoje. Na próxima coluna vou tentar escrever um guia para essas fontes de energia ciberdesbundadas.
******
Hermano Vianna é colunista do Globo