Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O consenso da mídia diante de uma injustiça brutal

“Nós não conseguimos respirar”, estampava a primeira página [4/12] do tabloide nova-iorquino Daily News, em referência às últimas palavras de Eric Garner, morto em julho durante uma ação policial em Staten Island, onde morava. Garner, de 43 anos, foi agarrado pelo pescoço por policial que tentava, com a ajuda de outros, imobilizá-lo. Caído no chão, ele diz várias vezes que não consegue respirar. O incidente foi filmado. O homem que fez as imagens diz que Garner, que era ambulante e vendia cigarros avulsos na rua, havia apenas apartado uma briga quando foi abordado pela polícia.

Na quarta-feira [3/12], a justiça americana decidiu não indiciar o policial acusado de realizar a manobra que acabou sufocando Garner. Milhares de pessoas foram às ruas de Nova York em um protesto pacífico contra a decisão, interrompendo o trânsito em algumas ruas da cidade. A história torna-se ainda mais dramática porque ocorre poucos dias depois da justiça inocentar o policial que matou o jovem Michael Brown em Ferguson, no Missouri. Nos dois casos, os policiais eram brancos e as vítimas, negras – o que impulsionou o já inflamado debate sobre discriminação racial em abordagens policiais.

Indignação

Mas se o caso em Ferguson dividiu a mídia americana, o de Nova York fez com que ela encontrasse certo equilíbrio. Na morte de Michael Brown, enquanto veículos conservadores mostravam ceticismo sobre a investigação aberta para averiguar as ações do policial Darren Wilson em agosto, a imprensa liberal ressaltou as queixas de negros, que reclamam de como são tratados pela polícia rotineiramente em suas comunidades. Já a notícia sobre a liberação do policial Daniel Pantaleo – visto no vídeo agarrando o pescoço de Garner – provocou incredulidade nos três principais canais de notícias a cabo dos EUA. Tanto no liberal MSNBC quanto no conservador Fox News, a reação dos âncoras e comentaristas era a mesma.

“A decisão de hoje levanta questões profundas e dolorosas sobre a justiça na América”, declarou o reverendo Al Sharpton em seu programa, Politics Nation, na MSNBC. Na mesa redonda The Five, na Fox News, a apresentadora Kimberly Guilfoyle enfatizava como a reação policial contra Garner havia sido desproporcional. A âncora Greta Van Susteren, no mesmo programa, mostrava-se cética: “Este homem estava desarmado, estava vendendo cigarros – quero dizer, não era um roubo, ele estava vendendo cigarros – e você tem vários policiais em volta dele, e quando ele disse que não conseguia respirar deveria ter sido uma boa oportunidade para que parassem… Nós não aplicamos a pena de morte por venda ilegal de cigarros nas ruas”. Na CNN, comentaristas diziam-se surpresos com a decisão da justiça. “Dados os fatos disponíveis e levando em consideração que Eric Garner, que cometeu um delito muito pequeno, se é que cometeu, acabou morrendo, é surpreendente [a decisão inocentando o policial]”, afirmou o analista legal Jeffrey Toobin.

O humorista Jon Stewart abriu mão das piadas para falar sério sobre o caso em seu programa The Daily Show, que mistura jornalismo com humor no canal Comedy Central. “Se comédia é igual a tragédia mais tempo, então eu preciso de mais tempo”, afirmou, completando: “Mas eu ficaria contente com menos tragédia, para ser franco com vocês”.

Justiça sufocada

Alguns cartunistas ressaltaram, em seus desenhos, o fato do vídeo que registrou a morte de Garner não ter, aparentemente, contribuído para a decisão da justiça. Matt Davies, do jornal Newsday, desenhou todos os membros do júri vendados, enquanto a figura da justiça, também vendada, mostra a eles imagens em um celular. “Eu gosto de distorcer as coisas e quero que as pessoas sejam pegas de surpresa quando olham meus cartuns. Neste caso, o júri também está vendado. Eu espero que isso fortaleça a mensagem”, diz Davies.

 

Outros jornais publicaram cartuns em que a figura da justiça aparece sufocada. Foi o caso do Boston Globe e do New York Daily News. Em ambos os desenhos a justiça profere a última frase de Garner, que virou palavra de ordem nos protestos: “Eu não consigo respirar”.

“Eu acho que, para certos eventos excitantes, cartunistas costumam buscar uma imagem ou frase simples e certeira. Aqui você tem um grande senso de injustiça junto com o apelo agonizante de Garner. Não é surpresa que vários cartunistas fizeram uma combinação destes elementos”, afirma o cartunista Dan Wasserman, cujo desenho para o Boston Globe mostra a justiça de joelhos, lendo um jornal com a manchete sobre a decisão de não indiciar o policial e pensando que não consegue respirar.

A rede varejista Walmart tirou do ar, um dia após a decisão da justiça, um comercial que – ainda que não intencionalmente – lembrava a morte de Garner. No anúncio, um homem negro dá um celular a sua filha que, empolgada, o agarra com força enquanto ele reclama, sufocado: “não consigo respirar”. A empresa afirmou que o comercial estava no ar desde o meio do ano, mas resolveu interromper sua circulação após receber críticas no Twitter. “Nós entendemos por que o anúncio pode ser visto de forma diferente do que foi visto originalmente”, respondeu o Walmart no microblog.