Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Somos todos farsantes

Em pleno século 21 e a despeito da frenética expansão dos meios de comunicação, não é difícil encontrar quem ainda duvide que o homem fincou os pés na lua, que o nosso DNA é 99% igual ao dos ratos e até mesmo que o Holocausto tenha realmente acontecido, atribuindo seus horrores à dramatização da comunidade judia, de forte ascendência na imprensa e intelectualidade norte-americana. E de fato é um traço humano marcante transitar entre a rejeição unilateral e a adesão peremptória sem ligar para a razão e a lógica, quando não para a própria realidade, sempre sujeita a ser desvirtuada ou associada às mais variadas e bizarras teorias conspiratórias.

A exemplo, aliás, da própria crença incondicional na existência de Deus, que se consolidou através dos séculos indiferentemente a descobertas da ciência que se contrapõem às narrativas bíblicas, sobre a origem do homem e do próprio universo. A menos, é claro, que se encare a coisa simbolicamente, embora nem isto a arcaica liturgia da Igreja conceda, mantendo-se fiel até mesmo a relatos tão verossímeis quanto à existência do papai Noel. Sendo que este pelo menos ainda pode ver visto por todas as partes nesta época do ano, meio despojado de seu antigo e tradicional espírito de confraternização, nesses tempos em que paz e harmonia são cada vez mais escassos, mas, enfim, como símbolo da febre consumista a que hoje em dia se resume a data magna da cristandade.

Já Deus, que se saiba ninguém nunca viu – e se viu, talvez nem tenha se dado conta, se é que o Criador não está em todas as partes, em todas as coisas de sua magnífica obra, como acreditam os mais devotos. Ideia que seduzia até mentes privilegiadas da estatura de um Einstein que, mesmo sendo ateu convicto, confessou sua “ilimitada admiração” pela estrutura do universo, em sua célebre “Carta a Deus”, escrita pouco antes de sua morte. O que não impediu que definisse a religião, em geral, como “expressão e produto da fraqueza humana, e a Bíblia, uma coleção de honoráveis, porém primitivas lendas, no entanto bastante infantis”.

Curiosamente, o poderoso argumento da perfeição do universo – tênue e talvez único fio que conecta ciência e fé – não chega a ser fundamental nos cânones das maiores religiões do planeta. Talvez por implicar num mínimo de instrução e conhecimento, algo que grande parte da população mundial ainda está distante. E à religião, nada pode ser melhor do que a ignorância, a boa fé e o fanatismo. Tripé no qual, aliás, se sustenta não só a catequese religiosa como todas as outras formas de doutrinação e, por que não dizer, de dominação e subserviência cega.

Vigaristas virtuais

Por estas e outras se pode afirmar, sem medo de errar, que por mais paradoxal que pareça, o excesso e o grande fluxo de informação dos dias atuais nem sempre traz benefícios e chega a ser contraproducente, na medida em que, ao invés de esclarecer e elucidar, pode ser usado exatamente para fins opostos, ou seja, para manipulação e distorção dos fatos. Tal qual aconteceu nas recentes eleições, decididas a favor da candidata petista, como se sabe, por força de um poderoso e agressivo marketing direcionado muito mais à desconstrução de seus adversários do que propriamente, de valorização de propostas e do próprio legado de seus quatro anos de governo. O que, por si só, provavelmente não seria suficiente para garantir a reeleição.

Sabendo-se que a propaganda é a alma do negócio, que a repetição de uma mensagem ou versão mentirosa com o tempo adquire status de verdadeiras, não é de estranhar a infinidade de histórias forjadas que ganharam fama e reconhecimento indevidamente. A própria Histórica em si, tal qual é ensinada ainda hoje nas escolas está cheia de incorreções e reducionismos, que ensejam não só conclusões equivocadas como subvertem a realidade. Não é à toa que o marketing passou a ser fundamental no jogo político, em que não há lisura de comportamento e muito menos compromisso com a verdade. Ou seja, um prato cheio para prestidigitadores profissionais que nestas eleições em particular, se notabilizaram por agir com a sutileza de um rolo compressor.

Menos mal que pelo menos a história do país tenha sido passada a limpo por uma série de obras que preencheram grandes lacunas e se tornaram verdadeiros best-sellers, como a série Brasil, uma História, do dublê de jornalista e escritor Eduardo Bueno, o impagável Peninha; a trilogia 1808, 1822 e 1889, de Laurentino Gomes; e o imperdível Guia politicamente incorreto da história Brasil, do também jornalista Leandro Narloch, entre outros. Obras que resgataram a verdadeira trajetória do país desde o descobrimento até os tempos atuais e que, apesar de mostrarem um Brasil bem diferente daquele cheio de passagens épicas e grandes personagens, alguns alçados a condição de verdadeiros heróis e mártires, são leituras obrigatórias que ao revisarem nosso passado permitem entender melhor nosso presente.

Um entendimento agora incrementado pelo inesgotável e auto-renovável manancial da internet, e que redimensiona o próprio papel dos veículos de comunicação. Isto tudo, é claro, dentro de um processo de maturação naturalmente propenso ao conflito de ideias e a bulir com os instintos humanos mais primitivos – e deploráveis. Do narcisismo que campeia nas redes sociais à proliferação de anomalias como pornografia, pedofilia e os mais variados golpes engendrados por vigaristas virtuais que fazem a festa no mundo digital.

Escândalos e maracutaias

Excrescências que também podem se apresentar de maneira mais sutil e dissimulada, em atividades não exatamente criminosas, mas igualmente nocivas e lesivas à sociedade. Afinal, se por um lado os novos paradigmas estabelecidos na era cibernética, por assim dizer, resgatam a humanidade das trevas da ignorância e marginalização social, nem por isso o caminho está livre de desafios e sabotagens de todos os matizes. E o perigo está justamente nos mesmos instrumentos que alavancam tal benfazeja revolução, ou seja, a palavra e os meios de comunicação, cada vez mais corrompidos e direcionados à manipulação das massas.

Estrategicamente aboletados em postos de destaque na imprensa e mídias digitais, de tão manjados nem se dão mais ao trabalho de disfarçar seu partidarismo inescrupuloso e raivoso. Fazem o chamado trabalho sujo, contaminando e enxovalhando o meio jornalístico ao renegar as regras básicas de uma imprensa respeitável. A ponto de o chamado quarto poder já não ostentar o viço e a capacidade de influenciar e influir nas decisões e muito menos, no destino do país.

Prova cabal do descrédito e esvaziamento de seu papel institucional foi a frustrada cartada final da revista Veja, na boca das eleições, com a tal edição contendo a revelação do doleiro Alberto Yousseff de que tanto Lula como Dilma sabiam do propinoduto da Petrobras. Um material bombástico, sem dúvida, mas que acabou não surtindo efeito por conta de um erro estratégico prosaico, ao antecipar em dois dias o lançamento da edição, deixando clara assim a intenção de interferir no pleito.

O que não só facilitou a defesa da candidata petista como neutralizou o verdadeiro massacre de Aécio Neves no derradeiro e mais importante debate, no maior palanque do país, o da poderosa rede Globo. Que para todos os efeitos, faz parte da mesma panela da imprensa hegemônica, estigmatizada como oposição e inimiga de tudo que diz respeito ao petismo.

De fato, num ambiente condicionado pela parafernália tecnológica, por conceitos pré-concebidos de toda natureza, que nos impõem o que comer, o que vestir, no que gastar nosso suado dinheirinho – não tendo acesso às tetas do governo, nada soa mais falso e enjoativo do que promessas que, como todos sabem, raramente são cumpridas. Principalmente por parte de quem já esteve lá – caso do PSDB de Aécio Neves – e deixou um rastro de escândalos e maracutaias que não ficam muito aquém das agora atribuídas ao governo petista. A diferença, como se sabe, é que os de agora estão vindas à tona aos borbotões, enquanto em relação àqueles, a grande imprensa praticamente não tomou conhecimento.

Melhor incréu que otário

No grande dilema humano representado pelo princípio do dualismo, a rejeição sumária e a adesão incondicional são opostos que gravitam em torno do mesmo eixo, que remonta ao empirismo da tábula rasa, idealizado pelo pensador John Locke (1623-1704), que compara a vida a uma folha em branco que vai sendo preenchida com o conhecimento adquirido mais pela experiência do que com a razão e ideias pré-concebidas. Pois é esta a mentalidade predominante hoje em dia. Com a razão, a lógica e o bom senso no banco de reservas, a busca pela verdade, assim como da própria justiça e do bem estar, sob os auspícios da internet, não se esgota mais na racionalidade, na aceitação de regras que não deram certo.

Como todos estão fartos de saber, a sociedade anseia por mudanças, por novas propostas, caras novas. Daí o contraste entre a debilidade irreversível da velha imprensa e a pujança das novas mídias. Salta à vista a desconfiança e descrença da sociedade nas antigas fórmulas e discursos tendenciosos, brandidos por pitbulls emasculados e sabujos governistas que não se pejam em transigir até mesmo quando os gatunos são pegos com a mão na massa, como na roubalheira na Petrobrás. É ainda mais constrangedor vê-los acudir com panos quentes recorrendo à desculpa de que delitos semelhantes já ocorriam no passado, como se um erro justificasse outro. Ou pior: que hoje se rouba bem menos que antigamente.

Pensando bem, de repente não se trata de nenhum absurdo ou ignorância duvidar que o homem já passeou na lua, que seis milhões de judeus foram exterminados pelos nazistas, no parentesco entre homens e ratos e em outros eventos, digamos, atípicos e anticonvencionais. Mentiras e empulhações são o que mais há por aí e no fundo somos todos uns farsantes, fingindo, mentindo, enganando e sendo enganados o tempo inteiro. Não estranha que haja tanta gente especializada e regiamente paga só para engrupir os outros.

Faz parte do folclore jornalístico o caso de um redator, ao ser escalado para escrever uma crônica a propósito da Semana Santa, mais especificamente sobre as circunstâncias que resultaram na crucificação de Jesus Cristo, retrucou, gaiatamente: “É para escrever contra ou a favor?” Ou seja, enquanto houver quem se disponha a justificar o injustificável, e até mesmo garantir que o diabo não é tão feio quanto parece, melhor ser incréu do que otário. Ou não?

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Ivan Berger é jornalista