Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Prisão de jornalista mostra face obscura do Irã

Na noite de 22 de julho, agentes da inteligência iraniana invadiram o apartamento do correspondente do Washington Post em Teerã, Jason Rezaian, 38, e o levaram com a mulher, Yeganeh Salehi, 30, também jornalista. Yeganeh, iraniana, foi libertada em outubro, mas Jason, americano-iraniano, continua preso na solitária e sem acesso a advogado. Ele tem hipertensão, dores lombares crônicas e depressão.

A Justiça demorou quase cinco meses para levar Jason a um tribunal. Mesmo após o indiciamento, no último fim de semana, ninguém explicou as acusações contra ele, além da menção, vazada à mídia local, à suposta ameaça à segurança nacional. Jason, a quem foi negado o direito de fiança, já é o jornalista ocidental que passou mais tempo preso no Irã. No Twitter e no Facebook, a campanha #FreeJason pede a libertação dele.

Está cada vez mais claro que nem os setores responsáveis por sua detenção conseguem encontrar justificativa para tal. Jason, ao que tudo indica, foi engolido pela máquina kafkiana de um regime perigosamente rachado sobre a negociação nuclear e a relação com os EUA.

Para mim, Jason não é apenas mais um colega jornalista a adoecer nas prisões de um regime arbitrário. Ele é o melhor amigo que guardo dos quase três anos que passei como correspondente da Folha no Irã (2011-14). Sua detenção ocorreu exatos 20 dias depois que eu fui embora do país.

Ele, com quem compartilho fissura por boa comida, me apresentou alguns dos melhores restaurantes de Teerã. Em nossos almoços semanais, divagávamos sobre o governo e compartilhávamos dicas de pautas e contatos. Também rolávamos de rir fazendo imitações ou tirando sarro de nós mesmos. Sou imensamente grato a ele e a Yegi, como sua mulher é chamada pelos mais próximos, não só pela acolhida em momentos adversos, mas também por terem sido o epicentro da incrível vida social que minha namorada (brasileira) e eu tivemos em Teerã.

Jason me transmitiu seu amor pelo Irã, terra de seu falecido pai – um vendedor de tapetes persas que ficou famoso por presentear com uma peça cada um dos 52 reféns americanos libertados, em 1980, após o sequestro da embaixada dos EUA.

Enredo repetido

Jason é expert em tapetes persas. Também me ajudou a entender por que a complexa psique iraniana mescla ufanismo e amargura em doses iguais. Sua família é uma das mais respeitadas em Mashhad, capital religiosa do Irã (leste), como comprovei quando fomos à cidade em 2012.

Mas Jason, com toda sua desenvoltura no idioma farsi, também tem laços viscerais com San Francisco, onde nasceu e viveu até 2008. Como muitos californianos, tem jeitão tranquilo e mente aberta e curte uma boemia.

Esse livre trânsito entre os dois mundos é uma arma poderosa a serviço do talento jornalístico de Jason. Suas reportagens traziam insights raros e sacadas certeiras que ajudavam o público americano a decifrar o Irã e a demonstrar que governo e população são coisas distintas. Jason achava que seu trabalho poderia ajudar na reaproximação entre Teerã e Washington, ensaiada desde a eleição do presidente Hasan Rowhani, em 2013.

Não sei se a nobre ambição de criar pontes sobreviverá a tanto sofrimento. Os que mantêm Jason na prisão são provavelmente os mesmos que vêm tentando sabotar os esforços de Rowhani rumo à reinserção diplomática do Irã e à abertura interna.

Parece se repetir o enredo dos anos 1997-2005, quando forças ultraconservadoras dentro do próprio regime recorreram até a assassinatos políticos para minar a agenda reformista do então presidente Mohammad Khatami.

O único capaz de interromper rapidamente o impasse no caso é o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, detentor da palavra final em Teerã.

Por ora, parecem não surtir efeito os apelos lançados pelo governo americano e por jornalistas do mundo todo.

A prisão de Jason, que se arrasta num limbo sem sequer nova data de comparecimento no tribunal, diz muito sobre a persistente face obscura do regime.

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Samy Adghirni, da Folha de S.Paulo, em Caracas