“De um milhão de abortos ilegais no País, 33 viraram casos de polícia em 2014. A maioria das denúncias foi feita pelos próprios médicos” (O Estado de S.Paulo, 21/12/2014).
Os efeitos dessas denúncias vão muito além da prisão de possíveis inocentes. Garantir que os médicos ou hospitais não façam denúncias em casos de aborto seria o primeiro passo para diminuir o número de mortes em decorrência de abortos mal feitos, já que as mulheres evitam procurar hospitais com medo de uma possível denúncia e punição. A atitude dos médicos é criticada pelo presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, João Ladislau Rosa: “O médico não tem o direito de agir como polícia. Mesmo que o aborto tenha sido clandestino, a mulher foi buscar cuidado de sua saúde e o profissional é proibido de agir contra a paciente”.
Enquanto o Código Civil continuar considerando o aborto como crime, é preciso que, pelo menos, a polícia faça – já que os médicos não fazem – uma rigorosa apuração dos fatos, antes de considerar as mulheres como criminosas.
O papel da imprensa teria que ir além da entrevista com as vítimas (culpadas, dirão alguns) e representantes de entidades oficiais. Seria preciso ouvir os médicos, autores das denúncias, para entender as suas verdadeiras motivações: eles têm medo de ser considerados cúmplices ou agem apenas motivados por crenças pessoais? Por acreditarem que essas mulheres merecem ser punidas?
Sobreposição de valores
A reportagem do Estadão contou a história de algumas vítimas:
“No dia 17 de junho deste ano, Cristina (nome fictício), de 22 anos, chegou ao Hospital Municipal do M’Boi Mirim, na zona sul da capital, com fortes dores abdominais. Com quatro meses de gestação e sem condições financeiras para procurar uma clínica clandestina de aborto, tomou dois comprimidos de um remédio ilegal para forçar a interrupção da gravidez. A médica que realizou o atendimento da jovem resolveu denunciá-la à polícia. ‘Fiquei algemada na cama por três dias’, conta Cristina. ‘Me senti um lixo em pessoa, com escolta até para ir ao banheiro. Estava apavorada’.”
Ainda segundo o jornal:
“As prisões por aborto ilegal no Brasil se concentram no Sudeste. O Rio tem 15 presas, São Paulo, 12, e Minas, uma. As demais denúncias foram registradas no Paraná (3) e no Distrito Federal (2). Acre, Maranhão, Rondônia, Tocantins e Roraima não informaram o número de denúncias. Todas as mulheres foram enquadradas na artigo 124 do Código Penal, de 1940, que criminaliza o aborto. A pena pode variar de um a três anos de detenção. Os perfis das rés têm semelhanças: jovens, negras, com pouca escolaridade e baixa renda.”
Em São Paulo, onde há 12 mulheres cumprindo pena pela prática de aborto, 7 foram denunciadas pelos médicos que as atenderam. Uma atitude que, para a Defensoria Pública do Estado, é um desrespeito ao sigilo médico: “Segundo o Código de Ética da Medicina, diante de um abortamento, seja ele natural ou provocado, o médico é proibido de comunicar o fato à polícia ou à Justiça”, informou a reportagem do Estadão.
O presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo acredita que existe um desconhecimento da ética profissional ou uma sobreposição de valores: “Se o médico não desconhece o código, está colocando suas convicções de ordem filosófica ou religiosa acima disso. Rompe até com os preceitos éticos. As mulheres podem e devem denunciar esses casos”.
Serviço relevante
A penalidade por quebra de ética, segundo o jornal, varia de advertência pública até a cassação do direto de exercer medicina. Se considerarmos que o médico que faz aborto pode ser condenado à prisão, o risco de uma advertência pública talvez seja visto como uma punição aceitável, nesses tempos em que os médicos vivem aterrorizados por medo de um processo por parte de seus pacientes.
Discutir o aborto – do ponto de vista médico, ético e legal – é a melhor forma de a imprensa prestar um bom serviço aos leitores, à sociedade e até aos médicos que acabam, seja qual for sua motivação, piorando a situação das mulheres que, involuntariamente ou não, se veem nessa situação.
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Ligia Martins de Almeida é jornalista