Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Jornalismo mundo-cão é o alvo do ator

O burburinho em torno de O Abutre começou em setembro, no Festival de Cinema de Toronto, no Canadá: o filme de estreia do diretor Dan Gillroy (roteirista de títulos como Gigantes de Aço e O Legado Bourne e irmão do diretor Tony Gillroy, indicado ao Oscar por Conduta de Risco), era o melhor trabalho já feito por Jake Gyllenhaal.

O ator de 34 anos, famoso pelos olhos azuis, indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante em 2006 pelo sofrido Jack Twist de O Segredo de Brokeback Mountain, apaixonou-se de tal maneira pela história de Louis Bloom que decidiu produzir o thriller. O longa, que estreia este mês nos cinemas brasileiros, foi eleito um dos dez melhores filmes do ano pela centenária National Board of Review por traçar um raio-x do telejornalismo mundo-cão americano.

Gyllenhaal vive Louis Bloom, uma figura sinistra, surgida do nada, dona de uma ambição sem tamanho, nenhum pendor ético e um desconhecimento absoluto do jornalismo acadêmico. Assim, ele se torna uma estrela da mídia televisiva de Los Angeles. “O filme é sombrio. Los Angeles, onde nasci e sempre vivi, é essencialmente horizontal. A topografia local e o fato de fazer sol praticamente o tempo todo imprime em seu cenário uma perversidade singular. Aqui, você pode ver tudo o que acontece, embora muitas vezes de dentro de um carro. Só é preciso ter a coragem de abrir a janela para observar o lado selvagem da segunda maior metrópole americana”, disse o ator a CartaCapital em um hotel do SoHo, em Manhattan.

Lúcido, Gyllenhaal diz que vê O Abutre como uma oportunidade para discutir, de forma intensa e hipnotizante, um tema criminosamente deixado de lado pelas sociedades civis do mundo ocidental: a transformação da indústria da informação nos últimos anos e o fim do que ele chama de “hierarquização da notícia”: “Eu sair na rua e comprar um café na esquina não pode ter o mesmo destaque, nem sequer aparecer na mesma página de um jornal ou no mesmo segmento de um telejornal que o discurso anual do presidente dos EUA. Não pode! Quando esta distinção se dissipa, o que fica é o caos. E isso é muito perigoso”.

Gyllenhaal, que havia perdido 11 kg para viver Bloom, chega para a conversa com braços imensos, explodindo na camisa de malha, resultado do treinamento intenso na famosa academia de boxe Church, em Nova York, por conta das filmagens de Southpaw (ainda sem título em português), o novo filme de Antoine Fuqua, em que vive o boxeador Billy Hope, um campeão nos ringues cuja vida pessoal devastada por uma série de tragédias.

Você disse certa vez que gosta de voltar do set de filmagem e desabar, em casa ou no quarto de hotel, feliz e exausto de ter experimentado de fato um dia de trabalho duro. Foi assim em O Abutre?

Jake Gyllenhaal – Foi, mas havia uma pressão constante, inerente a este personagem, que me ajudou muito no processo de criação. Hoje, quando vejo o filme, penso que consegui deixar aquela energia muito específica dele lá nas filmagens, o que é muito gratificante.

Como foi o processo de pesquisa?

J.G. – Eu havia acabado de fazer Marcados para Morrer (dirigido por David Ayer, em 2012) e, para o filme, passei cinco meses no sudeste de Los Angeles tentando entender o que é de fato ser um policial naquela área mais barra-pesada da cidade. Zanzei com eles, neste período, pelo menos três vezes por semana, o dia todo. Observei cenas de crime e, quase sempre, haviam repórteres setoristas de polícia por lá. Ou seja: eu os vi primeiro pela ótica dos policiais. Quando O Abutre virou realidade, entrei em contato com dois irmãos que rodam L.A. fazendo isso à noite e com quem já havia esbarrado durante as filmagens de Marcados para Morrer. De um modo bizarro, a vida deles me era familiar, tive quase uma sensação de déjà vu. Em seguida, comecei imediatamente a memorizar este filme como se fosse uma peça.

>> O Abutre(Nightcrawler, 2014) – Trailer HD Legendado

Era essencial criar um tom específico para o Louis?

J.G. – Exatamente. Os solilóquios dele são gigantescos, nunca havia feito nada igual para um filme. Eu precisava estar muitíssimo bem preparado. Veja bem, fizemos Marcados para Morrer com 7 milhões de dólares, uma produção bem barata para os padrões de Hollywood. O Abutre custou apenas um pouco mais, 8,5 milhões de dólares, e só tínhamos 26 dias de filmagens, nem uma hora a mais. Eu sabia que, inevitavelmente, perderíamos uma ou outra locação, e a única saída para o caso de termos de alterar radicalmente a ordem de gravação seria eu ter o texto completo, de trás para a frente, na ponta da língua. Aqueles diálogos viraram minha bíblia. Cada ponto, cada vírgula, cada expressão, eu os tinha na cabeça.

Não houve, então, espaço para improvisação. De que modo você prefere trabalhar?

J.G. – Não vou mentir, adoro improvisar e faço isso em quase todos os projetos em que me envolvo, é como prefiro trabalhar, mas neste caso era simplesmente impossível. O que mudávamos aqui e acolá era a intenção ou o contexto, mais especificamente a intensidade de determinadas falas. Em uma cena eu gritava, tal qual um celerado. Em outra, optamos por manter um estado quase letárgico, de alguém frio, sem contato com as emoções dos outros. O processo de edição, comandado pelo Dan (Gillroy), foi crucial para o filme ser o que ele é.

Você passou a consumir informação e a pensar o jornalismo de modo diferente depois de mergulhar no mundo de Louis?

J.G. – Sim, mas é importante frisar que o trabalho dele e de seus pares é completamente diferente do dos paparazzi, por exemplo. Louis trabalha com vida e morte, não com o registro, muitas vezes banal, do cotidiano dos famosos. Mas, de alguma forma, o filme pergunta se o público, o espectador, o consumidor de informação, não é também um cúmplice ativo, um responsável direto pela existência dos repórteres mundo-cão. Tratamos de algo muito sério: do desejo desenfreado por informação em nosso tempo e da necessidade emergencial de profissionais capazes de determinar exemplarmente o grau de importância dos fatos.

Jake Gyllenhaal sair na rua e comprar um café na esquina não pode ter o mesmo destaque, nem sequer dividir espaço, aparecer na mesma página de um jornal e no mesmo segmento de um telejornal que o discurso anual do presidente dos EUA. Não pode! Quando essa distinção, se dissipa o que fica é o caos hierárquico. Veja bem, meu trabalho é a arte. Abomino, naturalmente, qualquer tipo de categorização aleatória, de castas, de rótulos, com uma exceção. O Abutre só reforçou minha certeza de que, no caso da informação, a hierarquização da produção e da edição de notícias jamais foi tão necessária quanto nos tempos de hoje. Se eu abrir meu celular agora, posso encontrar com facilidade algo similar ao que Louis faz. O perigo desta história não são os Louis da vida, e sim o campo fértil criado para este tipo de trabalho informativo, que só aumenta.

Você diria que este é seu personagem mais assustador?

J.G. – Sinceramente, não sei. Porque a graça e a parte mais assustadora de O Abutre é a real possibilidade de se identificar, de simpatizar com ele. E até concordar com algumas de suas tiradas. Por exemplo, com a maneira como ele usa frases feitas comuns no mundo corporativo e da autoajuda, que são ironicamente exatas e críticas àquele universo específico. O senso ético do Louis é o de um jovem que se isolou da vida real e mantém uma relação muito mais estreita com o computador, com a internet. Uma de suas frases mais interessantes é: “Passo a maior parte do meu tempo conectado e eu sei absolutamente tudo sobre você”. Ele é uma metáfora ambulante que, ao mesmo tempo, revela algo profundo sobre esta geração.

Você cresceu em Los Angeles. O quão diferente são os noticiários locais do que é apresentado em O Abutre?

J.G. – Não muito, toda noite tem uma tragédia. E o que fazemos com a programação televisiva, seja no campo do entretenimento, seja abrindo espaço para esse tipo de narrativa no noticiário da noite, é uma decisão eminentemente política. Louis acredita que é um artista, que de fato está fazendo algo com inegável ressonância estética.

O que você acha do argumento de que esses programas são mostrados por uma razão óbvia: a audiência?

J.G. – É uma questão complexa, mas, sim, somos, nós todos, cúmplices do que aconteceu com a indústria da informação no mundo ocidental. Veja bem: estou me incluindo neste barco. Já me peguei algumas vezes deixando uma notícia de fato importante quando alguém me manda uma mensagem para ver um gato caindo de quatro andares e sobrevivendo. “Jake, corra, alguém fez um vídeo, e o gato era tão fofo!” Eu vou ver, né? É parte da natureza humana. Não me interessa patrulhar o consumidor de informação, meu problema é com a ausência de discussão sobre este fenômeno. O Abutre é uma tentativa de discutir um tema fundamental para todos nós que não está sendo debatido como se deveria na esfera pública. Isso me assusta. Meu convite é para o espectador, para pensar um pouco em como criamos e alimentamos profissionais como o Louis.

Louis tem trejeitos marcantes e uma voz singular. Você trabalhou muito nas características físicas dele?

J.G. – Passei muitos dias correndo no Griffith Park, em Los Angeles, aumentando a distância diariamente, até chegar a 24 Km. Queria que o Louis fosse algo assim como um coiote como os que vivem nas cercanias da cidade. Pensava na topografia de L.A. e em como eles são pilhados, vêm dos morros que circundam a cidade, cansados e famintos, com o olhar de quem vai fazer algo ruim. Era o Louis.

Você também é o produtor-executivo do filme. A satisfação foi similar à de atuar?

J.G. – Em cada pedaço. Aprendi de fato como a coisa funciona. Eu amei esta experiência. O aspecto financeiro, a formação da equipe técnica, do elenco, a celebração de terminar cada dia de filmagem, a sensação é indescritível. É um jogo de xadrez diferente do que eu estava acostumado, não era mais o tabuleiro de se criar o personagem e seguir adiante com ele. Era mais. Quando entro no cinema agora, a primeira coisa que faço é perguntar ao meu diretor qual o volume ideal para a projeção. Aprendi que isso é tão essencial para se contar a história quanto minha atuação. Ambição, trabalho duro, jogo de cintura e fé são fundamentais para o produtor-executivo, o que, ironicamente, eram as armas principais do Louis também no roteiro do filme. Ou seja, casou direitinho.

Os críticos seguem dizendo que este é seu melhor trabalho no cinema. Você concorda com eles?

J.G. – Concordo que esta é uma questão completamente subjetiva. Por outro lado, estou extremamente orgulhoso deste filme e satisfeito com o que fiz. Este ano foi particularmente intenso para mim, filmei Demolition, de Jean-Marc Vallée, Southpaw de Anthony Fuqua, e Everest, de Baltasar Kormákur (todos com estreia marcada no Brasil em 2015), mas em cada hora livre que tive me peguei tentando convencer as pessoas a ver O Abutre. Dá para você ter ideia do quanto eu amo este filme. O que posso dizer é que nunca me orgulhei tanto de algo que fiz no cinema.

É maluquice encontrar algo de outro de seus personagens mais marcantes no cinema, o Donnie Darko, do filme de mesmo nome, no Louis?

J.G. – É! (risos!) Mas eles são como primos de segundo grau que não se vêem há tempos, né? Aliás, eu não gostaria de vê-los de jeito nenhum na mesma mesa de jantar em um feriado nacional. Ia dar confusão. Mas minha família, coitados, eles têm de lidar com este encontro, de uma maneira ou de outra, todos os anos, no Dia de Ação de Graças (rindo muito). Há, em comum, uma maneira de pensar fantasiosamente e uma grande inocência nestes dois personagens.

Como fazer a audiência se identificar, torcer por alguém como o Louis, através da exposição desta inocência?

J.G. – Lembro que estava olhando os repórteres de tevê de Los Angeles correndo de um lado para o outro atrás da tragédia da vez durante o processo de pesquisa de O Abutre quando tive o clique: “Eles são como crianças em busca da próxima árvore para subir e do próximo objeto para queimar”. Eles são muito mais perigosos, claro, mas a inocência, o aspecto alucinógeno, também presente no Donnie Darko, estava lá. O Louis tem sua própria viagem psicodélica também.

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Eduardo Graça, da CartaCapital