Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O processo belicoso dos médicos brasileiros

Se fosse preciso sinalizar um momento-chave para a guinada para a direita, de modo mais explícito, de parte significativa da classe média, eu apontaria a chegada dos médicos cubanos. A percepção que tenho – posso estar enganado – foi que a atitude belicosa e militante de parte significativa dos médicos brasileiros, no episódio médicos cubanos, liberou geral o reacionarismo que estava até então dissimulado e evasivo (ver aqui entrevista com Frei Betto). Recordo que em questões polêmicas anteriores, como a das cotas raciais, fora os reacionários de carteirinha havia, pelo menos, uma tentativa de encarar a questão e questioná-la através de argumentos racionais, lógicos, assentados na meritocracia, que seria a primeira vítima deste modelo inclusivo à universidade via raça.

Por que o corporativismo médico, representado pelos militantes que xingavam os cubanos que desembarcavam nos aeroportos, significou uma maior visibilidade e explicitação de um pensamento difuso e só exercitado à boca pequena na sociedade? Penso que os médicos constituem uma elite respeitada e sua voz é, por isso, ouvida com mais atenção em uma sociedade desde sempre marcada pela separação entre a Casa Grande e a senzala. No imaginário popular, e especialmente na classe média, que compreende o quanto é difícil e tortuosa a carreira médica a começar pelo funil do vestibular, os médicos são representantes legítimos, mais do que ninguém, a pertencer por mérito à Casa Grande. Nada mais justo, em um país onde o diploma universitário é, praticamente, um título de nobreza, que a considerada mais nobre e requisitada das carreiras profissionais tenha relevância e peso.

O irônico é que hoje a carreira médica somente oferece carreiras bem-sucedidas financeiramente a muito poucos. A maioria vive em regime de sobretrabalho e salários indignos. Alguns atribuem esta situação ao fato da maioria dos médicos se concentrar nas grandes regiões metropolitanas. A questão é mais complexa e envolve, segundo os médicos, não só salários como também a incerteza de que em prefeituras do interior eles receberão no fim do mês e outras de ordem pessoal. Nada disso, no entanto, justifica não querer ir para o interior e não querer deixar que outros façam isso, por puro corporativismo, criando um ciclo vicioso do tipo “Não vou e não deixo que ninguém vá no meu lugar”. Sem falar do racismo ali exercitado.

O papel das mídias sociais

A singularidade da atitude belicosa dos médicos para com colegas estrangeiros, amparados por seus Conselhos Profissionais, fica mais evidente se cotejada com outras profissões como, por exemplo, engenharia, que conheço mais, onde dados do Ministério do Trabalho informam a existência de 70 mil engenheiros estrangeiros no país e ainda assim os representantes dos conselhos profissionais, embora exijam regulamentação maior, ponderam ser importante o conhecimento e a transferência de tecnologia que isso representa, conforme demonstrado no texto que segue extraído de uma publicação do Confea (Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura): “O deputado Eli Corrêa Filho e o presidente do Crea-SP, o engenheiro Francisco Kurimori, concordam que a vinda de profissionais precisa ser regulamentada com urgência. ‘Não somos contra o ingresso de empresas e profissionais estrangeiros. Afinal, o país também precisa desse conhecimento’, diz Kurimori. ‘Precisamos exigir reciprocidade, ou seja, os mesmos direitos, de forma que essa parceria proporcione transferência de tecnologia e também a definição de critérios, um balizamento para essa atuação. Se for para competir, não aceitaremos; se for para agregar, trazer novos conhecimentos, não haverá problema’, afirmou o deputado.”

É claro que, depois disso, o discurso preconceituoso e conservador evoluiu como um rastilho de pólvora, chegando ao ápice na eleição. Um discurso estimulado e reforçado pela grande mídia que, para “agregar valor” aos seus quadros diante da batalha eleitoral, contratou, em regime de urgência, brucutus mais afeitos ao estilo bélico, como Lobão, Reinaldo Azevedo e só não contratou o Roger, ex-vocalista do Ultraje a Rigor, que é tido como um QI de gênio, porque daí seria gaiatice demais. Debite-se importância, também, ao papel das mídias sociais, que ao mesmo tempo em que trabalham na difusão de valores civilizatórios, servem como válvula de escape aos piores instintos. Diria que mais a este último do que ao primeiro, pelo menos, nesta primeira etapa.

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Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor