Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Brasil não muda sem mobilização popular

No primeiro dia de 2015, a TV Record reapresentou a entrevista que Silvio Caccia Bava concedeu ao jornalista Heródoto Barbeiro, no principal telejornal da emissora. Caccia Bava é editor-chefe da versão brasileira do jornal mensal Le Monde Diplomatique. Sociólogo com vasta experiência em planejamento urbano, ele agora é o responsável pela edição de um dos nossos jornais de maior qualidade. A conversa resultou em uma das mais importantes contribuições do jornalismo em 2014 para quem ainda não desistiu da mudança no Brasil, mesmo depois do retrocesso contra os protestos que aconteceram a partir de junho de 2013.

A entrevista foi ao ar pela primeira vez em 26/11/2014. Eu mesmo fiz a transcrição (3/1). Não encontrei o texto da conversa na web. O vídeo com o colóquio entre os dois só está disponível no YouTube. O Monde Diplomatique teve que retirar a entrevista do seu site “a pedido do ‘proprietário’”, o Canal R7, que não permitiu a exibição da vídeo-entrevista pelo site do jornal.

A entrevista ficou mais interessante depois de 10 minutos de conversa entre os dois, quando Heródoto aprofundou a questão da desigualdade e da distribuição de renda. O editor do Monde Diplomatique apresentou uma série de medidas que podem e são tomadas em vários países para diminuir a desigualdade social, como o imposto sobre grandes fortunas e heranças. O jornalista questionou o editor: “E por que o PT não faz isso, uma vez que está no poder há 12 anos e uma de suas bandeiras é a melhor distribuição de renda no país?” O editor disparou:

“Minha avaliação é que desde 1997 o sistema político foi capturado pelas empresas. Desde 1997 as empresas podem financiar as campanhas eleitorais. Antes não podiam. É no governo Fernando Henrique que começa esse negócio. E hoje em dia, nas bancadas eleitas para o Congresso Nacional em 2010, de 513 parlamentares no Congresso Nacional, 230 tinham sido financiados por cinco grandes grupos econômicos, que formaram uma bancada com esses 230 em defesa de seus interesses. Então eu diria assim: para jogar esse jogo, todo o mundo, todos os partidos, o PT inclusive, têm que se envolver com o que a gente está assistindo aí. Porque custa muito caro, nesse critério, eleger um senador, eleger um deputado e tal. Se você proibir o financiamento de campanhas eleitorais, muda o jogo.”

Lobistas do usufruto

O entrevistador brincou e perguntou se voltaríamos a vender “estrelinhas” para financiar campanhas. Caccia Bava comentou que não voltaríamos a esses bons tempos, mas pelo menos não teríamos “um eleitor 100 vezes mais poderoso que o eleitor indivíduo”:

“Quer dizer, o Congresso ganha uma nova representação. E acho que tem que ter, inclusive, um limite para o financiamento de pessoas físicas. No Canadá, por exemplo, você não pode financiar mais do que três mil dólares canadenses como pessoa física. Isso obriga a ampliar a base de sustentação financeira da campanha e obriga o candidato a sair pra rua.”

O editor citou casos de cabos eleitorais movidos a dinheiro que nada têm a ver com projetos políticos e mudanças estruturais na economia. Ele crê que o financiamento corporativo das campanhas está na raiz de todos os nossos problemas com a política e os políticos. E está certo neste ponto: nossa política é refém das grandes empresas e seus interesses.

Heródoto, em sua perspicácia habitual, perguntou se uma reforma política não seria um pré-requisito para todos os tipos de reforma que necessitamos. Caccia Bava mostrou dúvidas sobre o interesse dos nossos políticos nisso:

“O Congresso não vai retirar poder de si próprio. Não vai dar um tiro no pé. Você tem que ter uma mobilização popular ampla, ao estilo de junho de 2013, que fala ‘queremos uma reforma política, queremos uma constituinte independente pra isso’.”

Ele mesmo não crê que vá acontecer nenhuma Constituinte popular. Acredita que o Congresso está comprometido demais com interesses corporativos e que os ganhos suspeitos dos congressistas impedem a prática da verdadeira política séria. Não interessa a eles nenhuma mudança significativa. Está bom assim mesmo, para eles que jogam o jogo sujo da política da defesa dos interesses das grandes empresas. Não são políticos. São lobistas do usufruto dos bens do Estado. O editor acredita que não haverá mudança sem o povo nas ruas. Sem amplos protestos, com milhões de pessoas nas vias urbanas a pressionar os políticos de forma contundente, nada vai mudar.

Que venham os protestos

E concluiu sua entrevista avisando que se o PT não “se renovar profundamente, vai ser passado para trás”. Acertou de novo o editor: se o Partido dos Trabalhadores não fizer as mudanças profundas de que necessita tanto, vai cair em desgraça aos olhos do povo, que não suporta mais a palavra “reforma” e está pronto e ativo nas ruas.O Movimento Passe Livre já agendou uma manifestaçãopara o dia 9 de janeiro em São Paulo, em frente ao Teatro Municipal, para protestar contra o aumento do custo do deslocamento urbano da população na cidade. O movimento pretende transformar a sociedade através da discussão do transporte público gratuito. Ele teve um papel fundamental nas maiores manifestações populares em 20 anos de história em nosso país, em 2013.

A situação atual demanda cautela e coragem. A direita avança abrigada na sombra dos compromissos e alianças que o PT teve que fazer para poder governar. Esses arranjos envenenaram e comprometeram as metas do partido para o país. Além de abodegar o nome de um partido conhecido como ético e limpo quando ainda era oposição. As alianças que o partido fez desgastaram sua imagem, desacreditaram seus projetos e quase levaram o adversário de volta ao poder.

É hora de “botar o bloco na rua”, como comentaram Heródoto Barbeiro e Silvio Caccia Bava. A população precisa mobilizar-se. Protesto não é crime, é um direito. Que venham os protestos, neste novo ano, e tragam de volta os milhões de cidadãos que, em 2013, ao invés de voltar para suas casas depois de mais dia massacrante no trabalho, tomaram as ruas para tentar mudar o Brasil e sua política corrompida.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor