“Os editores devem se lembrar de que há extensas partes do mundo nas quais as pessoas não existem a não ser em grupos de mais de 50 mil.” Assim o irreverente jornalista Alexander Cockburn, falecido em 2012, iniciou um artigo no qual ironizava os critérios de notícia da imprensa americana – uma crítica que se poderia generalizar, sem erro –, e que começava estabelecendo quantos negros americanos precisariam morrer para se equipararem à morte de um branco americano típico. Daí prosseguia com gradações até chegar às “hordas incalculáveis” dos “indianos, africanos e chineses”, em relação aos quais já não se conceberia qualquer número. “As pessoas somente começam a se interessar se falarmos em 50 mil e 100 mil mortos. Especialistas calculam que somente uns 50 mil indianos seriam capazes de igualar, em termos de notícia, ao total de 10 americanos”.
O texto foi publicado em 1976, mas é perfeitamente atual. E muito oportuno, diante da justa comoção mundial causada no início do mês pelo assassinato dos jornalistas do Charlie Hebdo, que, entretanto, não teve contrapartida em relação ao massacre de 2 mil pessoas promovido dias antes pelo grupo fundamentalista islâmico Boko Haram em Baga, na Nigéria. Como escreveu o correspondente Simon Allison, do Daily Maverick (ver aqui), da rede do britânico The Guardian, “há massacres e massacres. Podemos estar no século 21, mas as vidas de africanos parecem continuar a ser menos importantes”. Por isso, chamou para o título da reportagem a sua declaração: “Eu sou Charlie, mas também sou Baga: sobre o massacre esquecido da Nigéria”.
Uma lógica perversa
A disparidade é, antes de mais nada, reveladora da distinção entre os seres humanos: o ocidentais brancos, especialmente se têm prestígio social, valem mais que negros africanos ou pessoas que nasceram e habitam na periferia do mundo. Geopoliticamente, faz sentido, por mais que seja cruel: o que ocorre nos países mais importantes tem mais relevância, inclusive pelas consequências políticas que pode provocar. A derrubada das Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, é um exemplo disso. E o jornalismo se guia por esses critérios.
Seria necessário mudar os critérios para que a barbárie pudesse ser apresentada em toda a sua dimensão? Talvez, mas essa não é uma questão simples de resolver, porque não bastam as boas intenções de quem produz um jornal ou deseja disseminar uma informação: é preciso cativar o interesse do público, acostumado – pela própria imprensa, aliás – a prestar atenção apenas ao que, aparentemente, lhe diz respeito, por proximidade física, cultural ou ideológica. Para nós, portanto, é como se o que ocorre na Nigéria não existisse, ou não tivesse muita importância.
A dimensão da barbárie
Mesmo os critérios jornalísticos vigentes, entretanto, poderiam ter sido acionados para expor a barbárie africana em sua dimensão internacional. Empenhado em discutir o tema, o professor Marcos Palacios, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA, divulgou reportagem do Guardian (ver aqui) que começa por comparar as diferenças entre Paris e Baga para a cobertura jornalística: repórteres são alvejados, não é fácil divulgar denúncias porque as pessoas comuns têm dificuldade de acesso à internet.
“Os jornalistas mais próximos estão a centenas de quilômetros de distância”, informa o correspondente Allison, que ao mesmo tempo indica a gravidade da situação: “Boko Haram controla efetiva e completamente o estado de Borno [onde fica a cidade de Baga, no extremo nordeste do país]. Não são apenas terroristas: estão se tornando um Estado de facto”. Mais uma razão, diz a reportagem, para que o mundo saiba do que se passa por lá.
Marcos Palacios reitera: “Sim, o Boko Haram é o mesmo grupo que sequestrou mais de 200 meninas que foram ‘dadas em casamento’ a militantes do grupo [em abril do ano passado]; sim, é o mesmo grupo que se opõe à educação das mulheres e está usando meninas de 10 a 12 anos como bombas [no início de janeiro]; sim, é também um grupo fundamentalista que quer criar um califado na Nigéria, nos moldes do Isis [Estado islâmico]”.
O número absurdo de mortos no mais recente massacre, portanto, é só a expressão mais radical do motivo pelo qual a situação da Nigéria teria de ser destacada no noticiário do mundo todo.
Na Indonésia, no Lins
Se trouxermos a mesma questão da importância relativa da vida humana para o Brasil, poderemos comparar a disparidade da repercussão de dois casos recentes: o do instrutor de asa delta Marco Archer, preso na Indonésia desde 2004 por ter tentado entrar no país com alguns quilos de cocaína, sentenciado à morte e fuzilado no sábado (17/1), com outros condenados pelo mesmo delito, e o do menino Patrick Ferreira de Queiroz, atingido por um tiro de fuzil no Lins, subúrbio do Rio, e enterrado também em 17/1, quando faria 12 anos.
O escândalo em torno do fuzilamento de Archer tem sentido pela dimensão internacional do caso e é necessário para demonstrar a aberração da pena de morte. Mas conta com esse ingrediente que desperta a sensibilidade da classe média: era um dos nossos, mais ou menos como na história que se transformou em livro e depois no filme Meu nome não é Johnny. Note-se que em momento algum Archer foi chamado de traficante: era apenas alguém que carregava droga e foi flagrado pela alfândega.
Já o menino Patrick morreu supostamente numa troca de tiros entre traficantes e policiais da UPP do Lins. Também supostamente, de acordo com o registro policial, ele carregava uma pistola e uma mochila com drogas e um radiotransmissor.
É a monótona repetição da mesma velha história: a versão oficial de sempre, a justificar a pena de morte informal aplicada a quem vive o cotidiano da periferia das nossas cidades. Não há escândalo para mais do mesmo.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)