Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quem ri por último ri melhor

“Sátiras a temas religiosos devem ter limites?” “NÃO.”

Fui ilustrador da página de “Opinião” do New York Times nos anos 80. Às vezes eu ousava publicar algo que não pegaria bem com um grupo ou outro. Algum radical sempre berrava, mas não passava disso. Respondendo diretamente à pergunta: é claro que não. Quanto mais ácida, melhor a sátira.

A última coisa nesse mundo que preciso é de lição em direitos humanos. Durante seis anos fui voluntário na Anistia Internacional em Londres nos anos 1970 trabalhando pelos exilados políticos brasileiros – não trabalhei só pelos mais conhecidos. Visitei quase todas as prisões brasileiras no final daquela década.

Há um pouco mais de um mês, eu estava marchando nas ruas de Nova York, onde moro, protestando contra a decisão da Justiça sobre a morte dos jovens negros Michael Brown, em Ferguson, no Missouri, e Eric Garner, em Staten Island. Fiz o mesmo em 2012 quando Trayvon Martin foi assassinado na Flórida e recentemente deixei flores no memorial a dois policiais mortos no Brooklyn. Como se vê, sou eclético nas minhas homenagens.

Gostaria de ter estado em Paris no domingo (11/1) na marcha de mais de 3 milhões de pessoas para ser mais um a apostar nessa utópica sociedade livre para caricaturar profetas, papas, políticos e religiosos.

Esse é um direito supremo de um sátiro ou humorista em uma democracia. Não serão alguns covardes encapuzados, berrando lemas, ameaçando temas, querendo nos enfiar a lei islâmica goela abaixo que calarão qualquer Redação.

Defendo a liberdade de expressão irrestrita, mesmo depois desse trágico evento em que os cartunistas do jornal satírico Charlie Hebdo foram mortos, além de outras pessoas em um mercado kosher, em Paris. Mais da metade da minha família foi assassinada em campos de concentração. Nem por isso deixo de ser fã de Richard Wagner e de encenar suas óperas.

Admito sátiras aos cadáveres dos meus parentes. Sou filho da contracultura, pus meus pés na lama de Woodstock e até hoje acredito naqueles valores. “É tanta liberdade que não há mais como provocar”, disse Georges Wolinski quando esteve no Rio, em 1993. Wolinski foi assassinado na quarta (7/1), na Redação do Charlie Hebdo.

Choques e afogamentos

Sou de teatro e do teatro. Da farsa ao realismo, da sátira às lagrimas, coloco-me no palco fingindo encenar a mim mesmo, usando atores ou cantores líricos numa tentativa de reinventar o mundo ideal.

Pouco importa se é mesquita, sinagoga, igreja católica, templo evangélico, templo budista. Qualquer pessoa que leva a sério demais o fato de nos satirizarmos, que vá à merda! Ou que se enterre viva.

Sou intransigente no que diz respeito à liberdade de expressão de cada um: e sou ainda mais intransigente quando matam em nome de Alá, de Maomé, de Cristo, de comunismo, de nazismo, de fascismo etc. Caricaturar nunca é crime. Caneta e lápis não matam. Exageram, humilham, fazem rir, mas não matam.

Aceito qualquer caricatura a respeito da minha família. Posso ficar incomodado com desenhos de cinzeiros cheios de cinzas com a legenda “aqui dentro há uma pilha de ex-judeus”, mas não saio por aí metralhando as pessoas. Quando urram da plateia “judeuzinho, volta para o campo de concentração”, como berravam em Tristão e Isolda, no Theatro Municipal do Rio, em 2003, abaixo as calças e mostro a bunda.

Por responder mostrando a bunda fui processado por evangélicos hipócritas e fanáticos. Mas, um ano depois e muito dinheiro gasto com advogados, fui absolvido. Eu faria tudo de novo, assim como a equipe do Charlie está fazendo.

Ninguém jamais vai nos calar. Podem nos oprimir por um tempo, podem matar alguns, podem torturar com choques e afogamentos, podem tentar nos massacrar, mas quem ri por último ri melhor.

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Gerald Thomas é autor e diretor de teatro. É autor de Arranhando a Superfície (Cobogó)