Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Imprensa e democracia

A democracia moderna não é só o resultado direto da ampliação das condições de registro, circulação e acesso às ideias proporcionado pela invenção de Gutemberg. A especialíssima arquitetura institucional que a define foi literalmente parida pelas mãos da imprensa nos 85 artigos publicados entre 1787 e 1788, em dois jornais de Nova York, primeiro, e nos de todas as outras 12 ex-colônias, depois, para convencê-las a aderir à Constituição que as congregaria nos Estados Unidos da América. Neles, depois de discutir minuciosamente a origem do Estado e do governo, a natureza da lei e da soberania, os fundamentos dos deveres políticos dos cidadãos (sob quais condições lhes convém obedecer a uma autoridade) e as finalidades e limitações do poder político, James Madison, Alexander Hamilton e John Jay mostraram, passo a passo, o que é necessário fazer para “constituir uma união mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a tranquilidade doméstica, providenciar a defesa comum, promover o bem-estar geral e assegurar as bênçãos da liberdade para nós e nossa posteridade” num novo tipo de sociedade consensual.

Essas mesmas definições e esses mesmos objetivos seguem sendo as balizas pelas quais é necessário medir cada ato e palavra dos representantes eleitos para fazer um jornalismo crítico numa democracia. Nada a estranhar. Aqueles 85 artigos, reunidos no clássico O Federalista, passados 227 anos continuam sendo uma das mais atuais e incisivas reflexões jamais registradas sobre a natureza humana e o único manual prático de construção de instituições democráticas disponível.

Não há neles, porém, uma única palavra sobre a realidade vigente no final do século 18 que aqueles jornais “cobriam”. Monarquia, sucessão hereditária ou a relação entre Igreja e Estado não são mencionados. O debate que fez nascer a democracia moderna girava em torno do que se pensava em França e só falava do que ainda não havia.

Se os jornais daquela Nova York adotassem os mesmos limites que a imprensa brasileira se impõe hoje – registrar apenas e tão somente o que fazem e dizem no presente os atores do jogo político doméstico – a democracia moderna jamais teria nascido, assim como jamais se instalará no Brasil antes que essa atitude mude radicalmente.

Leitores potenciais

O mais formidável obstáculo à instalação de uma democracia aqui é a esmagadora maioria dos brasileiros – virgens de experiências outras, cerceados pela barreira da língua e sem nenhuma referência do que se passa numa sociedade democrática – estar convencida de que já vive numa. O que explica a trágica ilusão é que nossa imprensa se proíbe de cobrir os instrumentos da democracia real em funcionamento. Não expõe das sociedades que deles se servem senão os crimes e os desvios que negam a norma, enquanto trata isto que nos intrujam a partir de Brasília como se democracia fosse, o que facilita a vida de todos quantos querem nos empurrar definitivamente para fora do campo democrático: é a democracia que leva a culpa por tudo de mal que nos acontece em função da falta que ela nos faz.

Mais que a do modelo de negócio, o que há de muito perigoso na versão doméstica das crises paralelas da imprensa e da democracia é essa natureza “silenciosa” da doença que vai mergulhando o jornalismo brasileiro numa insensata “marcha voluntária” em direção à anulação da função institucional que o torna imprescindível tanto para os leitores quanto para a sobrevivência do nosso ensaio democrático. Seus sintomas não se manifestam naquilo que ela publica, mas sim, no que não publica, o que torna mais difícil a identificação do problema por diletantes. A transposição para dentro das redações, pelos especialistas certos colocados nos lugares errados que se tornaram padrão nas empresas do ramo desde que a crise do modelo de negócios se aprofundou, de ferramentas de “controle de qualidade” como o benchmarking, que funcionam para a afinação de padrões de governança corporativa, compõe o quadro de imunodeficiência contra essa distorção, pois que, no jornalismo, produzem o efeito desastroso de, medindo-se umas pelas outras, reconfirmar todas as redações “científica” e confortavelmente num erro que tende a ser fatal e do qual os inimigos da liberdade bem sabem se aproveitar.

Instituições são tecnologias sutilissimamente intrincadas onde o deslocamento de uma vírgula provoca, no funcionamento de sociedades inteiras, bugs tão paralisantes ou destrutivos quanto o mesmo tipo de “errinho” no funcionamento de um software. Avaliar sua construção e monitorar seu funcionamento com a pertinência e a precisão necessárias para contribuir para o seu aperfeiçoamento de modo a fazer diferença na vida do país e dos leitores, função essencial de uma imprensa democrática e única garantia de sua sobrevivência, requer, como tudo o mais hoje, especialistas absolutamente dedicados, com vasta experiência no estudo comparado da história das que as precederam e nos pormenores das instituições em funcionamento no mundo.

Se um órgão de imprensa terceiriza a orientação política de sua cobertura para o segundo escalão e não tem, nem como exemplo, o que propor nesse debate; se se limita a repassar pensamentos e declarações alheias até quando denuncia “malfeitos” a que lhe “dão acesso”, uns para atingirem os outros, os atores desse jogo de poder viciado a que ficou reduzida nossa vida política; se se restringe a uma crítica “moral” dos atores do nosso drama político, mas se mostra incapaz de uma crítica técnica e propositiva das instituições que, uns como vítimas outros como agentes, inevitavelmente os entorta a todos; ele se estará condenando a ser conduzido por suas fontes, em vez de conduzir seus leitores, e acabará sendo confundido com elas.

É o que explica por que a imprensa, parteira de reformas, tem ficado cada vez mais entre os apedrejados nas manifestações de seus potenciais leitores quando estes vão às ruas exigir reformas contra tudo quanto, no debate político nacional, “não os representa”.

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Fernão Lara Mesquita é jornalista