Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Manual da sátira piedosa

Há pelo menos uma vantagem em a tragédia do Charlie Hebdo, ocorrida na primeira semana de janeiro, ter sumido do noticiário recente: não sermos mais obrigados a lidar com o lixo tóxico produzido pelos sócios do Clube dos Relativizadores de Fuzilamento.

Os dias que se seguiram ao ataque que deixou 12 mortos na sede do jornal satírico foram um show de variantes do (por assim dizer) raciocínio típico da frase “não sou racista, mas”, que antecede declarações invariavelmente racistas – nesse caso, com o apoio ao atentado antes da adversativa.

O campeonato de abjeção incluiu apologistas do “eles provocaram”, também abjetamente usado com mulheres vítimas de estupro, cartunistas mais preocupados com os dividendos eleitorais da direita que com a chacina, rebaixadores de outras tragédias – como a do Boko Haram, na Nigéria – a argumento retórico e gente empenhada em conceder a assassinos legitimidade para representar uma comunidade ofendida em suas crenças. (Curiosamente, ou nem tanto, parte dessa gente costuma ver com horror eventos como a Marcha para Jesus – pacífica e constitucional, gostemos ou não dos participantes – e acha que o argumento da pobreza dos muçulmanos na França é inaplicável aos evangélicos também pobres do Brasil.)

A discussão sobre limites da sátira deflagrada pelo ataque, de todo modo, deve continuar. Prova disso é o artigo do ativista Scott Long (“Por que não sou Charlie”) publicado na “Ilustríssima” do dia 18 de janeiro.

Coisa séria

Em meio a bons pontos, principalmente o de que não é preciso aprovar a linha editorial do semanário para deplorar a morte dos cartunistas, Long comete equívocos em série – o primeiro deles, talvez, escudar-se nas ideias do filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), sério candidato ao título de ser humano mais desprovido de humor em todo o século 20.

Diz Long que a sátira “é um exercício do poder (…), sempre se ergue sobre os fracos”. Não: é o exercício do poder de quem não tem poder algum. Empresas e governos nunca se exprimem pela sátira – demitem, prendem ou mandam matar.

Sim, ela às vezes tem por alvo os fracos (o que de fato costuma torná-la pobre e rasa), mas nem sempre é fácil traçar a linha entre opressor e oprimido: no mundo há diferenças mais sutis que as existentes entre Eike Batista e um craqueiro.

O humor deve ser livre, inclusive para errar. Mas, se o caso é domesticá-lo, urge um “manual da sátira piedosa” com dicas de humor a favor, acompanhado de planilha para calcular a renda dos alvos (no Brasil, quem ganha acima de R$ 291, segundo dados do governo em 2012, já é classe média; pode, portanto, ser malhado sem dó). Afinal, sátira é coisa seriíssima, que pode até matar – e não exatamente de rir.

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Rogério Ortega é redator especial de “Mundo”, da Folha de S.Paulo