Em 1976 fiz uma das mais belas e importantes viagens da minha vida. Durante três semanas percorri de barco o rio Amazonas para documentar o que viria a ser a maior enchente do século XX no maior rio do mundo. Para assegurar a viagem, juntei informações numa pauta robusta e o dado de maior interesse era um curioso relatório da Sudam, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia.
O documento garantia que o Amazonas estava sendo assoreado. Terra que caía da margem do rio por causa dos desmatamentos estaria entulhando o seu leito. Mais raso, suas águas transbordavam além do nível normal das cheias anuais. Os grandes alagamentos se tornariam cada vez mais frequentes.
A previsão fúnebre era sustentada com argumentos lógicos e uma entonação cientificista. A experiência, porém, mesmo quando não tem um bom forramento técnico e científico, recomenda prudência em relação a esse tipo de profecia categórica. A Amazônia é muito grande e diversificada para caber em esquemas explicativos tão dogmáticos.
Por ter nascido na beira do Tapajós, eu tinha meu acervo de impressões e conhecimentos sobre os rios. Não vira conscientemente, porque tinha apenas quatro anos e meio de idade, mas ouvira falar muito e vira numerosas fotografias da cheia de 1953, considerada a recordista até então. A água tomou as ruas mais próximas do rio, mas a população continuou a sua vida, circulando sobre pontes. Houve prejuízos, mas não chegou a ser a tragédia anunciada.
A partir da década de 1960 eu faria excursões pelas várzeas sempre que a indústria da cheia (quase tão operosa quanto a da seca no Nordeste) emitia seu SOS. As notícias que chegavam ao sul do país eram recebidas com alarde. Cheia é sinônimo de flagelo e flagelado. Para o caboclo da Amazônia, cheia, até determinado limite, é coisa boa, “é um aviso de Deus”, como me assegurou o pernambucano Joaquim Godinho. Significa que novas áreas estão sendo fertilizadas pelo rio e o plantio será maior, como a colheita.
Terra erodida
Os incômodos e prejuízos de uma estação serão compensados na safra seguinte. Como nada acontece de graça, o varzeiro se dispõe a pagar o preço. Enfrenta com resignação o crescimento da água, que cobre a sua casa e o faz viver sobre estrados de madeira, as marombas.
Mas naquele ano de 1976 a coisa era mesmo séria, ainda que sem confirmar a teoria exótica da Sudam. Fui de avião de Belém para Altamira. Peguei a estrada para o porto de Vitória. Meia dúzia de barcos estavam ali ancorados. Fretei um, que era de Alenquer, para irmos até Prainha. Além do valor do frete, os três tripulantes quiseram três garrafas de cachaça e uma frasqueira cheia de café. Abastecidos, saímos.
O único passageiro extra era o piauiense José Luiz de Alencar Ibiapina. Ele tinha uma fazenda em Prainha e muitas teorias na cabeça. Como a de que a população das margens do Amazonas não era mais numerosa porque as pessoas de contaminavam pela aftosa na água e morriam aos montes. Conversava sem trégua, mesmo quando paramos, boquiabertos, para observar a fábrica de laticínios da Fazenda Aquiqui. Era um gigante ferido de morte e abandonado no meio da selva. Tinha um ar fantasmagórico.
Anos antes, uma revista americana saudara o dono do Aquiqui, Michel Silva, como o maior latifundiário do mundo. Era um título então inquestionável. Suas pretensões, porém, não iam além de 200 mil hectares. Anos depois, um novo maior latifundiário do mundo, o empresário Cecílio do Rego Almeida, se apresentava como dono de pelo menos 4,5 milhões de hectares. E a nova ministra da agricultura, Kátia Abreu, ainda diz que não há mais latifúndio no Brasil.
A travessia do Amazonas, da margem direita para a margem esquerda, o barco navegando de lado na feroz correnteza, foi uma aventura na noite alta, de lua cheia e águas revoltas. Quando entramos no grande rio, tive um calafrio: três ou quatro garrafas de cachaça já estavam vazias, o gole de café funcionando como estimulante entre várias talagadas de álcool, para manter os tripulantes acesos. Mas sobrevivemos.
Mal atracamos em Prainha, já madrugada, os tripulantes pularam do barco e foram continuar a bebedeira numa taberna na beira do trapiche, em versão melhorada, à base de cerveja. Eu subi a rampa atrás de uma pensão (hotel inexistia), que só encontrei depois de topar com outros bêbados. Eram jovens: comemoravam em torno de um cidadão homossexual, absolutamente nu, todos embriagados.
De cidade em cidade, fui fretando barcos até Manacapuru, no Estado do Amazonas, onde fiz a loucura, da qual só depois me dei conta, de andar de voadeira. Foi o momento de maior medo: o casco subia e descia, caprichosamente manobrado pelas ondas. Uma coisa era usar voadeira no Tapajós. Outra, bem diferente, no Amazonas. Eu me iludira com uma voadeira entre Monte Alegre e o Maicuru, numa viagem tranquila.
O Maicuru foi o grande momento da viagem. Eu lera bastante sobre o projeto do paulista Felisberto Camargo de criar ali a terra mais fértil do planeta. Em 1949, quando era diretor do Instituto Agronômico do Norte (precursor da Embrapa), ele mandara abrir canais entre o Amazonas e o Lago Grande de Monte Alegre.
A água drenada através desses canais iria depositar os sedimentos, por gravidade, até formar uma espessa camada de matéria orgânica capaz de sustentar safras recordes de alimentos. Mas a água não obedeceu ao raciocínio lógico de Camargo: invadiu o lago (500 milhões de metros cúbicos por dia no pique), destruiu os canais e formou uma enseada perigosa.
Ali testemunhei um filhote de búfala nascer e começar a nadar logo depois de ter caído do ventre da mãe. Búfalos eram tocados pelos vaqueiros a canoa. Um animal que escapasse podia ser arrastado pela correnteza para a calha do rio e nunca mais voltava. Pedaços de terra erodida com vegetação eram uma tentação para os búfalos se desgarrarem. Tudo ao alcance dos olhos estava coberto por água. O mundo naquele lugar ainda estava em formação, uma era tardia do Gênesis.
Fator acidental
Até as três da madrugada conversei com os caboclos. Ficamos empoleirados na varanda da sede do projeto, de olhar aceso e riso frouxo para os “causos” que cada um contava. Eles me fizeram companhia até a chegada do barco de Monte Alegre, que me levaria a Santarém. Desta vez eu ia num navio da linha, que parou no Maicuru apenas para me apanhar, conforme o acertado com o comandante. Só que eu esqueci a indispensável rede.
Subi a bordo sonolento, o convés coalhado de redes. O comandante foi ao seu beliche e voltou com uma rede para mim. Alguém armou a rede numa minúscula vaga, sem acender a luz, para não importunar os outros passageiros. Ali me joguei e dormi pesado.
Só acordei quando a manhã nascia, Santarém já à vista. Olhei para o céu claro e examinei minha localização. Minha rede estava para fora da amurada do barco, sobre o vácuo e o rio embaixo. Ao longo de algumas horas, eu, inadvertidamente, convidara um fator acidental a me lançar nas águas do Amazonas, para um mergulho certamente fatal. Mas o acaso me fizera um sobrevivente. E sobrevivi às inesquecíveis aventuras desses 12 dias, durante a grande enchente do maior rio do mundo.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)