Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O domínio do Facebookistão

Alguns dos piores regimes totalitários estão camuflados na forma de aparentes democracias. Mestres do discurso ideológico, manipulam a informação e as formas de interação de seu povo, que passa a acreditar no discurso oficial e na validade das atrocidades que cometem.

Com o crescimento do uso de mídias sociais e sua transformação na norma com que o mundo se comunica pela rede, o domínio do latifúndio do Facebook cresce de forma espantosa. De um dos vários serviços de socialização da rede, ele rapidamente se transformou em uma subdivisão da internet. Apoiado por seus satélites Instagram e WhatsApp, o gigante criou um feudo com suas próprias leis, costumes e relações de vassalagem.

A dominação do Facebook tem vários pontos em comuns com o de uma religião, ao estimular em seus participantes o proselitismo e a catequização. O valor de cada fiel é medido pelo volume de “amigos” que possui, mais do que pela eventual qualidade dessas relações. Cada membro funciona como agente de coerção, demandando a presença dos outros.

Mas não basta estar no Facebook, é preciso praticá-lo. E para isso é preciso estudar seus fundamentos, pensar nas melhores formas de utilizar seus recursos para aumentar o prestígio entre outros fiéis. O usuário-modelo verifica o Facebook antes de dormir, logo ao acordar e várias vezes ao longo do dia, prostrado sobre o smartphone. As cinco orações diárias do Islã são irrisórias perante as demandas da sua profissão de fé.

Com mais de 1,3 bilhão de usuários, o Facebook é uma das maiores religiões do mundo. E seu comportamento é cada vez mais parecido com o de um Estado fundamentalista. A influência sobre seus súditos é tão grande que raramente há entre eles a percepção de que algo está errado. Esta, quando existe, vem de fora e é rapidamente desprezada.

Suas timelines, como pôsteres de propaganda de regimes totalitários, mostram como o povo da mídia “social” é melhor, mais inteligente, mais sexy, mais belo, ariano enfim. Seu governante gosta de lembrar que a rede é de uso gratuito. Ao se mostrar em roupas comuns, tenta transmitir a ideia de que é um homem do povo, desapegado das riquezas mundanas, diferente dos capitalistas do passado. Seu objetivo maior é cumprir a função social de conectar o mundo, tornando-o mais aberto (para ele) e conectado (a seus serviços). Como todo megalômano, sua visão é grandiosa e ufanista. E tem a pachorra de propor a melhoria nas relações entre as pessoas e maior transparência dos governos.

Presos ao espetáculo do real, muitos usuários obedecem sem questionar às ordens de seus smartphones, prestando maior atenção neles do que em sua família ou no ambiente em volta. Pais levam crianças sem tirar os olhos do Facebook, mães conduzem bebês em carrinhos com os olhos grudados no smartphone e os pequenos são estimulados desde cedo a levar seus aparelhos para a praia, para a cama, para a mesa, para o banheiro. Os mais radicais abandonam bebês, não comem, dormem, ou guiam direito e sacrificam obrigações sociais em nome da fidelidade partidária. Páginas e personas são construídas até para animais de estimação, atualizadas diversas vezes por dia. A higienização estética da realidade, via Instagram, não quer fazer o mal, apenas limpar a sujeira em volta.

Da mesma forma que os catequizadores europeus faziam em solo indígena, os conquistadores do Facebook fascinam os nativos com seus ícones brilhantes, mantendo-os hipnotizados e dependentes. Como imperadores Romanos no Circo Máximo, a comunidade é distraída com a humilhação do próximo e jogos fúteis, enquanto preciosos dados são coletados e comercializados inescrupulosamente. O circo é tão eficiente que dispensa a distribuição de pão.

Disfuncional, desconectada

Os mais extrovertidos são as primeiras vítimas, vulneráveis por seu excesso de compartilhamento, sujeitos a punições variadas por discursos mal-interpretados. Você tem o direito de permanecer calado.

E quem cala consente. Como na União Soviética, a vigilância ideológica é onipresente, onisciente e, muitas vezes, onipotente. A comunidade age como os antigos espiões, marcando indivíduos em férias, eventos familiares, cerimônias religiosas e até nas ocasiões mais banais. Paredes têm olhos e ouvidos, e podem estar no fundo de uma selfie.

A Polícia do Pensamento agrupa indivíduos por suas preferências, cidades em que moram, escolas que frequentaram, áreas de atividade e profissões escolhidas, na tentativa de compreender e prever mudanças de comportamento. Acuados em seus guetos, muitos colaboram com a burocracia apenas para não ficar por fora e levantar uma eventual suspeita de dissidência.

As fronteiras do regime, como as de várias democracias de fachada, parecem abertas. Qualquer um pode sair na hora em que quiser. Mas quem sair verá cortada qualquer conexão que tem com os que ficarem. Muitos dissidentes, pelo medo da retaliação a seus familiares, acabam por ceder e se calar.

A velha geração se preocupa mais com esse domínio do que os novos. Talvez por conhecer o mundo antes da invasão ideológica e conseguir, com alguma dificuldade, lembrar de como era o cotidiano sem ela. Os mais novos, por comodidade ou por não conhecer alternativa, são idealistas, incapazes de imaginar a vida longe do Grande Irmão.

Em breve, drones cobrirão as poucas áreas do planeta em que a internet não chega, e levarão a pessoas que ainda não acessam a rede a ilusão de que internet e Facebook são sinônimos. Para os mais conectados, plataformas de imersão, como Oculus, criarão ambientes inteiramente artificiais, cujas leis do Facebook questionarão as da Física.

Como na Coreia do Norte, a população vítima desse tipo de regime se torna disfuncional, autista, desconectada em sua essência, incapaz de se opor a um sistema cada vez maior e mais poderoso. Cujo valor maior é colecionar identidades, engolir dados e fazer de tudo para alimentar o Leviatã.

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Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes), autor do livro Enciclopédia da Nuvem; www.luli.com.br