Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O triste balanço do fato

Mal passado um mês da tragédia parisiense que mobilizou a consciência e o afeto da quase totalidade do mundo, a imprensa começa a afastar-se do assunto. Isso parece natural uma vez que todo acontecimento jornalístico (a notícia, na verdade) obedece a curvas variáveis de interesse tanto por parte do público leitor quanto do próprio arbítrio editorial. O “natural” deve-se a que “notícia é aquilo que será menos interessante amanhã do que hoje” (André Gide), ou seja, a imprensa vive de fatos datados e com duração variável.

É arriscado tentar fugir à marcação temporal por meio do aprofundamento reflexivo. O risco é incorrer na pecha da banalidade e da desinformação, como atesta a fala do personagem Martin Chuzzlewitt no longo ataque de Charles Dickens (em 1844) à imprensa norte-americana:

“Atualmente do que precisamos são de fatos; nunca ensineis a estas moças e a estes rapazes senão fatos. Na vida, só temos necessidade de fatos. Não implanteis outra coisa em seu espírito: arrancai deles tudo quanto não se parecer com fatos; só por meio de fatos podeis formar a inteligência do animal racional”.

Mas esse risco não é apenas jornalístico, tanto que, na elaboração de sistemas de pensamento acadêmicos, pode-se opor a força dos fatos às generalidades. Assim acontece com a filosofia de Michel Foucault, tal como descrita pelo historiador Paul Veyne, que o conheceu de perto. Afirmando que Foucault não acreditava em nenhuma idéia geral, mas na verdade dos fatos, Veyne sublinha:

“O que nos faz sofrer, o que nos causa indignação, isso existe. Por outro lado, o sentido da história, a vocação da humanidade, o universalismo… Todas as grandes ideias não são realidades. Auschwitz é um fato, assim como a inocência de Dreyfus. Os crimes do stalinismo, o colonialismo, as alas de alta segurança nas prisões, o tratamento infligido aos loucos pelo sistema de asilos são fatos. Foucault não somente crê neles como os combate”. (Folha de S.Paulo, caderno “Mais”, 30/3/2008).

Como bem se sabe, o jornalismo incorpora o senso comum sobre os fatos, mas principalmente um senso moldado pelo positivismo, doutrina cujo auge coincide com a ascensão prestigiosa da imprensa burguesa. A elaboração histórica da ideia de “objetividade jornalística” – segundo a qual o jornalismo informativo deveria funcionar como uma espécie de espelho do mundo real – é também uma doutrina de caráter profissional-industrial.

O jornalismo implica, portanto, um tipo particular de “conhecimento de fato”, que não é outra coisa senão sensação e memória. E é conhecimento absoluto, como quando vemos realizar-se um fato ou recordamos o que se fez. Deste gênero é o conhecimento que requer uma testemunha. Redunda, na verdade, em História, em torno da qual sempre girou o jornalismo.

Paisagem única

Mas o que os fatos, em si mesmos, nos transmitem são conhecimentos contingentes, isto é, que poderiam ser de outra forma, relativos, não necessários. O problema é que, em alguns casos, a contingência jornalística, fortemente marcada pela data do acontecimento e sujeita à velocidade da curva de interesse, revela-se insuficiente para o real esclarecimento do fato. Ou para “combatê-lo”, como acentuou Veyne a propósito de Foucault.

Não basta, portanto, relatar os pormenores da ocorrência nem descrever suas consequências institucionais e emocionais. Num caso como o do massacre em Paris, um slogan (do tipo “Eu sou Charlie”, por exemplo), massivamente adotado como um recurso de compreensão e solidariedade graças à poderosa condensação emocional da frase, apenas ajuda a encobrir a dificuldade do esclarecimento.

Sob o envoltório apenas factual do ocorrido, permanece uma questão sempre pensada no mundo acadêmico e jamais resolvida na prática: a do universal, entendido como conceito rigoroso da razão e derivado da teoria do conhecimento. A ele referiu-se o presidente Barack Obama em seu discurso de solidariedade aos franceses: “Os nossos valores são universais!”

Obama apenas confirma o problema. Universais (valores como democracia, direitos humanos, respeito às diferenças, liberdade de expressão etc.) são dinâmicas de realização em vez de padrões de uniformidade, isto é, não são padrões globais de imposição de pensamento e conduta. O correto não é necessariamente o verdadeiro, e a conformidade nunca é algo concreto, mas uma abstração.

A frase do presidente norte-americano procede de uma ética universalista das verdades, que recai politicamente, em termos práticos, na velha centralização humanista operada pelo paradigma europeu de conhecimento e cultura. O acerto lógico-humanista da frase não a torna necessariamente verdadeira, posto que seu fundamento é um ideal ou uma fantasia: a suposição de que o racionalismo lógico seja uma invariância substancial e automática em todos os grupos humanos, portanto uniformemente aplicável à diversidade das situações existenciais. É o racionalismo que tem garantido hegemonia do pensamento europeu.

Deste modo, a uniformidade é tão só a perversão do universal difundida no mundo pela globalização. Para não ser perverso, o valor universal teria de ser algo conquistado no diálogo com a diversidade humana. Não é, portanto, a razão que de fato autoriza a uniformidade, e sim os interesses da produção que tentam transformar o mundo numa paisagem única, infinitamente semelhante ao modelo.

Euforia obscena

A violência perversa e abominável que irrompe como forma extrema de irracionalismo é a doença característica do aplastamento do diverso pela uniformidade. Reduzida a um fundo de buraco, a diferença vê o céu apenas do tamanho desse fundo, ou seja, pequeno, limitado e odiento.

Mas também a imprensa cada vez mais colada aos valores da produção, periga entrar em buraco semelhante, se não se educar para a diversidade, indo além do fato bruto, aprendendo que toda linguagem é simbólica e que símbolo implica limites e respeito.

De resto, causa espécie o alegado “ganho” comercial da imprensa após o atentado: Arrastada pelos sete milhões de exemplares da edição de Charlie Hebdo em 14 de janeiro (antes, apenas 50 mil), a mídia impressa francesa comemorou o aumento de suas tiragens.

Há algo de obsceno nessa euforia: desejo coletivo de mais informação ou fetichismo do papel-mercadoria? Um fato a ser apurado.

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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro