Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ex-executivo do disco conta suas aventuras musicais

Filho de mãe judia e pai árabe, nascido na Síria e criado em Paris. Morou em Nova York e no México. E, no meio disso tudo, foi peça fundamental para o desenvolvimento da música popular brasileira, acompanhando de bem perto a bossa nova, os gloriosos tempos da MPB pós-festivais e o rock nacional. Essa vida, que já deu livro, bem que daria um filme. E a hora está chegando. No dia 10 de março, o canal GNT exibe o primeiro dos cinco episódios da série “André Midani – Do vinil ao download”, na qual o ex-executivo do disco (que passou pelas gravadoras Odeon, Phonogram e Warner) conta suas aventuras, em animados papos em sua casa, com seus amigos – artistas ou não. Causos humanos, emocionantes, inusitados, heroicos e cômicos, que depois da exibição da série (sempre às terças-feiras, às 23h) tomam o formato condensado de um longa-metragem, a ser exibido em festivais no exterior.

– Sempre achei que eu era um fruto do acaso, que eu era um abuso de confiança, algo não muito confiável – brinca Midani, de 82 anos, durante conversa em sua ampla casa, na Gávea, desta vez com O Globo, ao lado dos diretores da série, Andrucha Waddington e Mini Kerti, da Conspiração Filmes (coprodutora do documentário).

Nove gravações, em sete meses

Tudo começou há sete anos, quando Andrucha se aproximou de Midani com a proposta de um documentário sobre a Phono 73, uma das históricas realizações do sírio, em 1973, com o elenco da Phonogram: um festival não competitivo, reunindo boa parte dos grandes nomes da MPB (que, na época, estavam na gravadora). Chico, Gil, Caetano, Bethânia, Gal, Raul Seixas, Simonal, Odair José… era uma constelação. Mas aí, em 2008, Midani lançou o livro de memórias Música, ídolos e poder: do vinil ao download. Mini Kerti leu o volume e achou que aquilo dava um filme de ficção.

Conversa vai, conversa vem, ao longo de alguns anos, e os diretores chegaram à conclusão de que o produto mais poderoso seria o que tivesse o homem de disco em pessoa, refletindo sobre suas memórias. A primeira ideia era realizá-lo a tempo do aniversário de 80 anos do homenageado (em 2012), mas foram necessários mais alguns anos para que chegassem ao formato ideal, encontrado ao gravarem, em 2014, um encontro informal de Midani, em casa, com seu mais duradouro parceiro, Gilberto Gil (37 anos de trabalho conjunto), e com o cineasta Cacá Diegues.

– Ali, a gente conseguiu encontrar o tom da cinematografia, aquilo deu muita segurança para prosseguir – conta Andrucha, que fez daquela gravação um piloto (com o qual conseguiu o aval de Daniela Mignani, diretora do GNT, para quem “havia ali uma história muito interessante”) e resolveu abdicar logo ali de qualquer pretensão como diretor daqueles não atores. – Nesse tipo de documentário, quanto menos você interferir, mais autêntico fica. Vira realmente uma coisa de memória afetiva, naturalista.

Foram, ao todo, nove gravações, de Midani com grupos diferentes, ao longo de sete meses. O roteiro da série acabou sendo feito na mesa de edição, por Andrucha, Mini e a montadora Moema Pombo. Ali, surgiu a organização em cinco capítulos: “Vinil” (com infância e juventude, chegada ao Brasil em 1955 e sua participação na propagação da bossa nova), “Anos de chumbo” (ditadura, festivais, Phonogram, artistas exilados e Phono 73), “Era de ouro” (consolidação da MPB), “BrRock” (a descoberta do fenômeno jovem nos anos 1980, quando o executivo estava na Warner e contratou Titãs, Ultraje a Rigor e Kid Abelha) e “Download” (a revolução da indústria fonográfica com a chegada da era digital).

– O André pegou toda a construção da indústria no Brasil e depois a virada, a hora em que o mp3 destruiu a indústria. Ele estava lá! – anima-se Andrucha.

Sem Roberto Carlos

Cacá Diegues, Fernanda Montenegro, Boni, Daniel Filho, Washington Olivetto, Fernanda Torres, Zuenir Ventura e Hermano Vianna ajudam Midani a escavar seu passado. Mas há também os cantores e instrumentistas, que além de completar verbalmente a narrativa, também fornecem números musicais inéditos. Acústicos, em sua maioria – como o que reuniu Marisa Monte e Arnaldo Antunes a Gilberto Gil e Jorge Ben Jor, estes lembrando nos violões o clássico disco “Gil & Jorge”, que os dois gravaram em 1974, inspirados por uma grande jam que Midani promovera no Rio juntando a MPB ao guitarrista Eric Clapton. Apenas um encontro foi elétrico, com Paralamas do Sucesso, Frejat, Liminha, Evandro Mesquita e Paulo Miklos, fazendo um improvisado show-baile noturno no jardim.

– Os convidados sabiam que iam tocar, só não o quê – conta Mini Kerti.

– Você consegue flutuar sobre todos os assuntos com a música, ela vai ilustrando e narrando o que eles estão contando, de uma maneira sutil – acrescenta Andrucha.

Uma das preocupações do diretor foi não fazer “um documentário chapa-branca”. E Midani fala livre na série. Em um momento, ele está em cena lembrando uma história do livro, de quando descobriu que as letras das músicas de Roberto Carlos que mais lhe interessavam eram aquelas escritas por Erasmo (ele acabaria levando o Tremendão para debaixo de sua asa, na Phonogram).

– Mas não quer dizer que o Roberto seja ruim, bem longe disso – explica Midani, que certa vez reuniu todo o cast da Phonogram para uma foto e usou-a para ilustrar um anúncio em que se lia “Só nos falta Roberto Carlos… Mas, também, ninguém é perfeito”. – Não tivemos a repercussão esperada, tanto que o Roberto não veio trabalhar com a gente. E eu flertei com ele algumas vezes. E a última foi numa ponte aérea, quando ele me disse: “André, vocês estão gravando coisas maravilhosas, eu sou um cantor de bolero, eu não tenho lugar na sua companhia”. Achei bonitinho.

No dia 16 de março, no calor da série, Midani autografa a reedição do livro que deu origem aos programas. A obra, editada pela Nova Fronteira, volta com dois capítulos inéditos (em que ele fala de encontros com Brian Epstein, empresário dos Beatles, e da viagem a Manchester para negociar os direitos de lançamento dos discos do New Order). Volta também sem as acusações (entre elas, de “práticas pouco convencionais como editor de música”) feitas a Enrique Lebendiger, dono da gravadora RGE. A família de Lebendiger exigiu o recolhimento do livro caso elas não fossem retiradas.

>> Leia um trecho de Do vinil ao download, de André Midani

******

Silvio Essinger, do Globo