Em meados dos anos 30, Gilberto Freyre tinha posições avançadas de esquerda. De esquerda, mas não socialista ou comunista. Nesse período, escreveu dois livros fundamentais da cultura brasileira: Casa-Grande & Senzala (1933) e Sobrados & Mocambos (1936), ambos de forte conteúdo de denúncia social, sobretudo o segundo, e, quase como um “intelectual orgânico” gramsciano, passou para a ação, envolvendo-se com sindicatos de trabalhadores do Recife. Em sua ficha do Dops, em 1935, constava ser “agitador, organizador da Frente Única Sindical, orientadora das greves preparatórias do movimento comunista”. O resto todos sabem: foi deputado constituinte em 1946, quando criou o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, de que se tornaria mentor por toda a vida, e foi endireitando, endireitando, até apoiar o golpe militar de 1964, tornando-se conservador e direitista assumido. Apoiava até a ditadura salazarista em Portugal.
Mas esta nota não tratará de sua obra de escritor e sociólogo e sim de um surpreendente gesto pessoal.
O outro personagem deste comentário é o escritor piauiense Permínio Asfora (1913-2001), que se formou em direito no Recife, foi jornalista no Rio (Última Hora) e militou por toda a vida na esquerda. Hoje prática e injustamente esquecido, Asfora, filho de imigrante palestino, escreveu sete romances e um folhetim. Sua obra mais famosa é Fogo Verde, lançada em 1951 pela editora Brasiliense, um clássico do romance social brasileiro, elogiado por gente do calibre de Álvaro Lins, Guimarães Rosa e Octávio de Faria.
Pois bem. Em meados dos anos 60, eu, praticamente um garoto, tornei-me rato da Biblioteca Municipal de Caruaru, onde a afabilidade da bibliotecária Glória tornava o ambiente mais claro e arejado. Li bastante coisa lá, sem qualquer sistemática, do modo mais caótico possível. E, claro, deixei de ler uma porção ainda maior. Três romances habitavam as prateleiras, às quais tínhamos acesso direto, e estavam na minha mira: Cascalho, de Herberto Sales; Chapadão do Bugre, de Mário Palmério, e Fogo Verde. Não lembro por que cargas d’água terminei por nunca lê-los, mas sei que são obras importantes. Agora, passados 50 anos, pude ler a reedição de Fogo Verde (2003), pela editora Scortecci.
O romance trata dos conflitos humanos e sociais no interior do Piauí, na primeira metade do século XX, quando foram descobertas cobiçadas minas de cobre, desencadeando disputas econômicas, tramoias políticas e dramas familiares e pessoais, numa linguagem ágil, enxuta, com alguns rasgos líricos. A obra merece, não apenas a fama, mas ser lida e estudada hoje em dia.
Diálogo solto
Onde Freyre entra nessa história? É que, nessa reedição, consta um artigo do sociólogo-escritor, estampado no livro Vida, Forma e Cor, de 1962. Portanto, quando o mestre de Apipucos já se alinhava às correntes conservadoras e, por isso, andou às turras com Permínio Asfora, renitente esquerdista.
A leitura dessas duas páginas, uma espécie de resenha de Fogo Verde, causou-me profunda impressão. É que Freyre, conhecido por sua vaidade extrema – vaidade “justa”, isto é, em total proporção com seu talento e a importância de sua obra –, pratica nesse texto um exercício de humildade e grandeza pessoal e profissional muito, mas muito raras nos meios intelectuais.
O artigo se intitula “Fogo verde e Permínio Asfora” e começa com a seguinte afirmação: “Há romance ‘social’ e romance ‘social’”. Em seguida, as definições. Um é social porque o romancista quase inconsciente “racionaliza” (…) aspecto ou estado social de civilização ou de cultura, por ele mais agudamente sentido ou observado. Cita Dickens, José Lins, Lima Barreto, Marques Rebêlo e outros. Já o outro tipo de romance “social” é deliberadamente social e até socialista, sectário, doutrinário, veículo de propaganda política, “quase sempre um risco para a arte”.
Logo em seguida, vai direto ao assunto:
“Comecei a ler o novo romance de Permínio Asfora – meu velho conhecido do Recife que de repente se separou de mim por motivo sectariamente político e deu até para agredir-me em jornais – com receio de encontrar em suas páginas simples caricatura daquele primeiro tipo de romance social; e explosão ou crua expressão do segundo. Mas aqui estou para dizer bem alto e bem claro que meu receio desfez-se no começo, ainda, da leitura do vigoroso livro; tão vigoroso que, a meus olhos, toma de súbito lugar ao lado de Cascalho, de Herberto Sales; e aproxima-se em qualidade e virtudes dos melhores romances de Jorge Amado e das melhores páginas de José Américo de Almeida, o que escrevo pesando bem as palavras e sem desejo algum de ser agradável a um escritor que pessoalmente antes repugna do que me atrai”.
Diz ainda Freyre:
“Vê-se que o autor, em quem cedo se revelou a vocação de romancista, vem procurando aperfeiçoar-se na arte nada fácil do romance. Que sua linguagem vem ganhando em vivacidade e naturalidade, sem resvalar em excessos de plebeísmo. Que seu modo de associar situações dramáticas às formas e cores de paisagem regional vem aproximando-se de alturas que, em nossas letras, só foram atingidas, até hoje, por mestres autênticos. Que o diálogo de seus personagens é solto, puro, simples sem parecer disco etnográfico, gravado em feira ou em reunião de família sertaneja”.
Vocês se lembram de algum intelectual brasileiro referindo-se nesses termos à obra de um desafeto? Correspondências para a redação.
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Homero Fonseca é escritor