Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Soft tissue’ não são ‘tecidos macios’

As matérias publicadas na quarta-feira (18/2) nos provedores Terra e UOL descrevendo o achado de um fóssil de réptil pré-histórico com restos de“tecido macio” na Colômbia, são mais um exemplo do despreparo e um total desserviço do jornalismo nacional para a divulgação científica.

Segundo as matérias, o fóssil de uma nova espécie de réptil marinho pré-histórico, um mosassauro, teria sido descoberto por pesquisadores da Universidade Nacional da Colômbia (UN) no estado colombiano de Tolima, com alguns de seus “tecidos macios” ainda preservados. A fonte original desse artigo, segundo ambos os provedores, é a agência France-Presse (AFP), uma das principais agências de notícia do mundo.

Diferente de outros artigos já publicados sobre paleontologia, ambos os provedores não cometeram o erro clássico de classificar o mosassauro como um dinossauro, sendo esse um ponto a se comemorar. Esses animais já extintos são répteis pré-históricos da família Mosasauridae que foram os principais predadores dos oceanos do final do Cretáceo. O grupo não está relacionado com os dinossauros nem com os plesiossauros.

Mesmo acertando na classificação dos mosassauros, os provedores brasileiros citados acabaram cometendo uma gafe em sua tradução do artigo original, o que ocasionou um pequeno movimento de grupos de negacionistas da ciência. Ao utilizar o termo “tecidos macios”, os provedores levaram aos seus leitores uma falsa imagem das estruturas encontradas pelos pesquisadores da Universidade Nacional da Colômbia e, somado a um total desconhecimento de termos básicos da Paleontologia pela população em geral, permitiram que negacionistas da ciência questionassem se os dinossauros realmente teriam sido extintos há milhões de anos, gerando criticas infundadas contra os dados publicados.

Errosde tradução são frequentes

Algo que deve ser esclarecido é que o termo “tecido macio” não existe nas ciências da vida e nem mesmo na Paleontologia não é utilizado. De forma um tanto genérica, médicos e biólogos utilizam os termos tecido mole (soft tissue) para pele, músculos e outros tipos de tecido orgânico que não seja mineralizado e duros (hard tissue), como são ossos, dentes e conchas. Assim, usa-se o termo tecido mole em oposição aos tecidos duros. Uma alternativa mais acadêmica e que evita essa possível confusão é a utilização do termo tecido não-resistente, como sugerido em Gobbo & Bertini, 2014. Para a Paleontologia esta diferenciação é importante porque tecidos duros tem maiores chances de se fossilizar. Assim, pode-se dizer que é mais comum a descoberta de fósseis de tecidos duros, como ossos e conchas, do que a descoberta de tecidos não-resistentes, porque estes últimos não são mineralizados. Portanto, não é de estranhar que quando se descobrem fósseis de tecidos não-resistentes, estes viram notícia.

Fósseis de tecidos resistentes são raros, mas não tão raros como pensam os leigos. Grandes quantidades de fósseis de tecidos resistentes já foram relatados na literatura. Alguns dos exemplos são, inclusive, brasileiros, como os peixes da Chapada do Araripe, que preservam até seu conteúdo estomacal. Porém, alguns dos chamados fósseis de tecidos não-resistentes apenas impressões ou moldes que marcam o contorno de um animal que não contém partes duras, como por exemplo moldes de águas vivas. A Tafonomia é a ciência que estuda justamente como ocorre a preservação de restos orgânicos como fósseis e seus estudos envolvem tanto estudos das rochas que envolvem fósseis quanto estudos de Actuopaleontologia, que envolvem o acompanhamento desde o post-mortem de seres vivos até sua decomposição e possível soterramento. Como dizemos hoje em dia, a Paleontologia não é uma ciência de gabinete, restrita às coleções de museus. Paleontólogos vão a campo, estudam processos biológicos, químicos e geológicos desde a morte dos organismos até sua preservação em rochas.

Mas qual foi o problema então, de utilizar um termo mal traduzido, de soft tissue, no inglês para tecido macio? Quais foram então as conclusões que o uso errado do termo induziu?

Primeiramente, devemos destacar que erros de tradução se tornaram muito frequentes na atualidade no meio jornalístico e de divulgação científica. Pressionado pelo tempo escasso e quiçá sem ter conhecimento de um profissional da área para recorrer e tirar dúvidas, o tradutor/jornalista se vê muitas vezes na situação de procurar dicionários ou mesmo tradutores automáticos escolhidos aleatoriamente, especialmente quando não domina o idioma original.

Sem relação

Um ponto interessante é notar que os dois maiores provedores brasileiros acabaram cometendo o mesmo erro de tradução, o que nos faz perguntar como isso ocorreu. Ambos os provedores creditam à pesquisadora Maria Páramo, professora da UN e uma das responsáveis pelo estudo dos restos do réptil citado, a afirmação de que “pequenas manchas brancas com tecidos entre os ossos, as quais correspondem às regiões em que estavam órgãos como os pulmões” teriam sido encontradas e que a conservação de tecidos macios em fósseis pré-históricos seria algo pouco frequente. Essa afirmação não condiz exatamente com o artigo Eonatator coellensis nov. Sp. (Squamata: Mosasauridae), a new species from the upper cretaceous of colombia, publicado pela dra. Maria Páramo na Revista de La Academia Colombiana de Ciencias Exactas, Físicas y Naturales.

Em seu artigo original, Maria Páramo afirma ter encontrado manchas fosfáticas que foram interpretadas como soft tissue, ou tecidos não-resistente [tradução sugerida para dirimir este tipo de confusão em Gobbo & Bertini, 2014. Tecidos moles (não resistentes): como se fossilizam?].

Pois bem, para quem tem algum conhecimento de tafonomia, uma das formas de preservação de tecidos moles é justamente a presença de manchas fosfáticas, quando estas manchas estão justamente envolvendo ossos, ou em cavidades limitadas por ossos, como cavidade abdominal entre costelas etc.. Então, se interpreta que o fosfato aí presente é originário de processos tafonômicos resultante da decomposição dos órgãos constituídos de tecido não resistente, como pulmão, por exemplo. No entender de um profissional da área, a interpretação da Dra. Páramo está correta. Uma das origens do fosfato nas rochas sedimentares é justamente pelo acúmulo de restos orgânicos, animais e vegetais, pois o fósforo está presente tanto em tecidos vegetais quanto em tecidos animais. Em animais está presente tanto nos ossos, dentes e conchas, como também nos tecidos não resistentes.

Se esta interpretação está correta, qual foi então o problema? O problema é que algumas pessoas, quando leram o termo macio, parecem ter imaginado alguma coisa como tecido biológico macio ao tato, algo que, se eu apertasse com os dedos, afundasse com o toque. Em nenhum momento os termos têm relação ao fato da estrutura estar mole ou flexível, e muito menos macia como apresentam as matérias. Tanto os fósseis de tecido mole quanto os fósseis de tecido duro continuam sendo rochas geradas no processo de mineralização.

Termos inadequados, informações incorretas

O fato de a pesquisadora encontrar manchas fosfáticas no fóssil de mosassauro também não é uma grande novidade para a Paleontologia. O paleontólogo Alexander Kellner descreveu em seu texto “Para além dos ossos“, publicado em 2012 na coluna “Caçadores de fósseis”, mais de um caso envolvendo manchas fosfáticas. Ele apresenta, por exemplo, o caso de um pesquisador nos anos 1970, que solicitou que seu preparador de fósseis, que trabalhava em um exemplar coletado na Bacia do Araripe, removesse um material esbranquiçado diferente da matriz sedimentar. Kellner também lembra que diversos exemplares do famoso depósito de Solnhofen, na região sul da Alemanha, tiveram o tecido mole “arrancado” durante a sua preparação, muitas realizadas no final do século 18 e no início do século 19.

No decorrer de seu texto, Kellner explica de forma bastante simples o motivo da maior fossilização de tecidos duros em detrimento dos tecidos moles. Esse mesmo tema é tratado de forma didática no artigo “Tecidos moles (não resistentes): como se fossilizam?

Mesmo sendo algo corriqueiro e bem documentado na Paleontologia, a inferência de fossilização de tecidos moles através das manchas fosfáticas pode gerar falhas de interpretação, como citado por Kellner. Ele lembra o caso do famoso “coração de dinossauro”, supostamente encontrado em um indivíduo de Tecelosaurus, que há 66 milhões de anos vagava pela América do Norte, e que se mostrou apenas uma concreção que coincidentemente se formou naquele local. Outro caso seria a presença de vasos sanguíneos em um exemplar de Tyrannosaurus rex, posteriormente explicado como um produto da ação de bactérias que não estariam relacionadas a qualquer estrutura biológica do animal. Logo, existem grandes evidencias da possibilidade de preservação nos fósseis de tecidos moles, mas estudos detalhados são necessários para corroborar a afirmação inicial da Dra. Maria Páramo.

Esses casos demonstram a necessidade de uma real aproximação dos meios de comunicação com especialistas das respectivas áreas noticiadas. Uma simples pesquisa ou rápida conversa com um profissional poderia evitar a utilização de termos inadequados e a propagação de informações incorretas. Essas falhas acabam servindo para sustentar uma agenda mantida por negacionistas para descaracterizar e desmerecer os novos dados e evidencias cientificas, o que aumenta cada dia mais o analfabetismo científico no país.

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Fabiano Menegidio é biólogo, bioinformata e mestrando em Biotecnologia e Silvia Gobbo é bióloga, ecóloga e paleontóloga