Emmanuel Levinas disse que a “consciência é a urgência de uma destinação dirigida a outro, e não um eterno retorno sobre si mesmo”. Penso que, embora não pareça, a frase se relaciona intimamente à “crise hídrica” em São Paulo.
Temos sido obrigados a ouvir e a falar em “crise hídrica”, na “maior seca em 84 anos” e expressões afins, que culpam a natureza, e não em catástrofe, colapso, responsabilidade ou palavras de igual gravidade.
O cidadão comum vive, na gestão do governo paulista, sob um regime eufemístico de linguagem, em aparência elegante, mas, na verdade, retoricamente totalitário, com o qual somos obrigados a conviver e, ainda, forçados a mimetizar.
“Crise hídrica”, “plano de contingência”, “obras emergenciais”, “volume morto”, “reservatórios”, tal como vêm sendo usados, não são mais que desvios covardes da linguagem e da política para ocultar o enfrentamento do real.
Não há água, houve grande incompetência, haverá grandes dificuldades, é necessário um plano emergencial de orientação e a criação de redes de contenção e de solidariedade. É preciso construir e distribuir cisternas, caixas d’água para a população carente, ensinar medidas de economia, mobilizar as subprefeituras para ações localizadas e, sobretudo, expor pública e claramente medidas restritivas à grande indústria e à agricultura, que podem ser bem mais perdulárias do que o cidadão.
Mas nada disso se diz ou faz. E por quê? A impressão que tenho é a de que a maioria dos políticos não trabalha sob o regime da responsabilidade –a condição de “destinação ao outro”–, mas sim na forma do “eterno retorno sobre si mesmo”.
Chapa do real
Vive-se, em São Paulo, uma situação de absurdo, em que, além das enormes dificuldades cotidianas –deslocamento, saúde, segurança, educação, enchentes, e agora, a de ter água–, ainda é preciso ouvir o presidente da Sabesp dizer que são Pedro “tem errado a pontaria”.
Meu impulso é o de partir para o vocativo: “Ei, presidenta Dilma, deputados federais, governador Alckmin, prefeito Haddad, vereadores! Ouçam! Nós os elegemos para que vocês batalhem por nós, e não por seus mandatos! Nós é que somos aquele, o outro, a quem vocês devem responsabilidade!”.
Ou não tem relação com a “crise hídrica” um deputado federal receber cerca de R$100.000,00 por mês em “verbas de gabinete”? Por que deputados têm direito a um benefício que, entre outros, lhes garante seguro de saúde e carro, se quem ganha muitíssimo menos não tem?
Desafio os deputados, um a um, a abrirem mão publicamente de seus seguros de saúde e a usarem o transporte público para irem ao trabalho –a entrarem no real.
Até quando a população, sobretudo a mais carente, que tem poucos instrumentos para amenizar o que já sofre, vai ser tutelada e oprimida sob o manto eufemístico da “maior seca em 84 anos”?
Queremos o real, a linguagem responsável, que explicita o olhar para o outro e dá sustentação e liberdade para que se possam superar as dificuldades com autonomia.
O eufemismo livra os políticos e aliena a população da chapa maciça do real. Ele representa um estado semelhante à burocracia ineficaz. Como ser responsável se, para cada ação, há infinitas mediações?
O resultado é que as mediações acabam por alimentar muito mais a si mesmas do que ao objetivo final e inicial de governar: ser para o outro –no caso, nós, impotentes diante do que nos obrigam a ouvir e, há meses, nos forçam a presenciar.
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Noemi Jaffe, 52, é doutora em literatura brasileira pela USP e autora de “O que os Cegos Estão Sonhando?” (editora 34)